10/05/2010

Feijoada à Minha Moda



Amiga Helena Sangirardi


Conforme um dia prometi

Onde, confesso que esqueci

E embora — perdoe — tão tarde
(Melhor do que nunca!) este poeta

Segundo manda a boa ética

Envia-lhe a receita (poética)

De sua feijoada completa.

Em atenção ao adiantado

Da hora em que abrimos o olho

O feijão deve, já catado

Nos esperar, feliz, de molho

E a cozinheira, por respeito

À nossa mestria na arte

Já deve ter tacado peito

E preparado e posto à parte

Os elementos componentes

De um saboroso refogado

Tais: cebolas, tomates, dentes

De alho — e o que mais for azado
Tudo picado desde cedo

De feição a sempre evitar

Qualquer contato mais... vulgar

Às nossas nobres mãos de aedo.
Enquanto nós, a dar uns toques

No que não nos seja a contento

Vigiaremos o cozimento

Tomando o nosso uísque on the rocks
Uma vez cozido o feijão

(Umas quatro horas, fogo médio)

Nós, bocejando o nosso tédio

Nos chegaremos ao fogão
E em elegante curvatura:

m pé adiante e o braço às costas

Provaremos a rica negrura

Por onde devem boiar postas

De carne-seca suculenta

Gordos paios, nédio toucinho

(Nunca orelhas de bacorinho

Que a tornam em excesso opulenta!)

E — atenção! — segredo modesto

Mas meu, no tocante à feijoada:

Uma língua fresca pelada

Posta a cozer com todo o resto.

Feito o quê, retire-se o caroço

Bastante, que bem amassado

ta-se ao belo refogado

De modo a ter-se um molho grosso

Que vai de volta ao caldeirão

No qual o poeta, em bom agouro

Deve esparzir folhas de louro

Com um gesto clássico e pagão.

Inútil dizer que, entrementes

Em chama à parte desta liça

Devem fritar, todas contentes

Lindas rodelas de lingüiça
Enquanto ao lado, em fogo brando

Dismilingüindo-se de gozo

Deve também se estar fritando

O torresminho delicioso

Em cuja gordura, de resto

(Melhor gordura nunca houve!)

Deve depois frigir a couve

Picada, em fogo alegre e presto.

Uma farofa? — tem seus dias...

Porém que seja na manteiga!

A laranja gelada, em fatias

(Seleta ou da Bahia) — e chega

Só na última cozedura

Para levar à mesa, deixa-se

Cair um pouco da gordura

Da lingüiça na iguaria — e mexa-se.

Que prazer mais um corpo pede

Após comido um tal feijão?

— Evidentemente uma rede

E um gato para passar a mão...

Dever cumprido. Nunca é vã

A palavra de um poeta...— jamais!

Abraça-a, em Brillat-Savarin

 seu Vinicius de Moraes




Do livro "Para viver um grande amor",
Livraria José Olympio Editora -
Rio de Janeiro, 1984, pág. 97.

Nenhum comentário: