30/09/2009

Sermão de casamento

(getty images)
Sermão de casamento

Em maio de 98, escrevi um texto em que afirmava que achava bonito o ritual do casamento na igreja, com seus vestidos brancos e tapetes vermelhos, mas que a única coisa que me desagradava era o sermão do padre: "Promete ser fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando-lhe e respeitando-lhe até que a morte os separe?"Acho simplista e um pouco fora da realidade. Dou aqui novas sugestões de sermões:- Promete não deixar a paixão fazer de você uma pessoa controladora, e sim respeitar a individualidade do seu amado, lembrando sempre que ele não pertence a você e que está ao seu lado por livre e espontânea vontade?
- Promete saber ser amiga(o) e ser amante, sabendo exatamente quando devem entrar em cena uma e outra, sem que isso lhe transforme numa pessoa de dupla identidade ou numa pessoa menos romântica?
- Promete fazer da passagem dos anos uma via de amadurecimento e não uma via de cobranças por sonhos idealizados que não chegaram a se concretizar?
- Promete sentir prazer de estar com a pessoa que você escolheu e ser feliz ao lado dela pelo simples fato de ela ser a pessoa que melhor conhece você e portanto a mais bem preparada para lhe ajudar, assim como você a ela?
- Promete se deixar conhecer?
- Promete que seguirá sendo uma pessoa gentil, carinhosa e educada, que não usará a rotina como desculpa para sua falta de humor?
- Promete que fará sexo sem pudores, que fará filhos por amor e por vontade, e não porque é o que esperam de você, e que os educará para serem independentes e bem informados sobre a realidade que os aguarda?
- Promete que não falará mal da pessoa com quem casou só para arrancar risadas dos outros?
- Promete que a palavra liberdade seguirá tendo a mesma importância que sempre teve na sua vida, que você saberá responsabilizar-se por si mesmo sem ficar escravizado pelo outro e que saberá lidar com sua própria solidão, que casamento algum elimina?
- Promete que será tão você mesmo quanto era minutos antes de entrar na igreja?Sendo assim, declaro-os muito mais que marido e mulher: declaro-os maduros.Escolha o seu amor. Ame a sua escolha !

Martha Medeiros

29/09/2009

Déjà vu (2007, 126 min.)


Chamado para recuperar provas após atentado que explodiu uma balsa em New Orleans, o agente federal especial Doug Carlin (Denzel Washington), que trabalha para a Agência do Tabaco, Álcool e Armas de Fogo, envolve-se em um projeto ultra-secreto do governo americano: um laboratório que manipula a relação entre tempo e espaço, para ajudar a prevenir crimes no futuro. Mas será que essa máquina pode mudar o passado?



Minha nota: ****

Eu amo tudo o que foi,

Tudo o que já não é,

A dor que já me não dói,

A antiga e errônea fé,

O ontem que dor deixou,

O que deixou alegria

Só porque foi, e voou

E hoje é já outro dia.



Fernando Pessoa, 1931

Canção na plenitude


Canção na plenitude
*********************
Não tenho mais os olhos de menina

nem corpo adolescente, e a pele

translúcida há muito se manchou.

Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura

agrandada pelos anos e o peso dos fardos

bons ou ruins.

(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)


O que te posso dar é mais que tudo

o que perdi: dou-te os meus ganhos.

A maturidade que consegue rir

quando em outros tempos choraria,

busca te agradar

quando antigamente quereria

apenas ser amada.

Posso dar-te muito mais do que beleza

e juventude agora: esses dourados anos

me ensinaram a amar melhor, com mais paciência

e não menos ardor, a entender-te

se precisas, a aguardar-te quando vais,

a dar-te regaço de amante e colo de amiga,

e sobretudo força — que vem do aprendizado.

Isso posso te dar: um mar antigo e confiável

cujas marés — mesmo se fogem — retornam,

cujas correntes ocultas não levam destroços

mas o sonho interminável das sereias.

Lya Luft

O texto acima foi extraído do livro "Secreta Mirada", Editora Mandarim - São Paulo, 1997, pág. 151.

28/09/2009

Convite



Convite


Não sou a areia

onde se desenha um par de asas

ou grades diante de uma janela.

Não sou apenas a pedra que rola

nas marés do mundo,

em cada praia renascendo outra.

Sou a orelha encostada na concha

da vida, sou construção e desmoronamento,

servo e senhor, e sou mistério
A quatro mãos escrevemos este roteiro

para o palco de meu tempo:

o meu destino e eu.

Nem sempre estamos afinados,

nem sempre nos levamos a sério.

******

Lya Luft

27/09/2009

O amor antigo


O amor antigo

*************

O amor antigo vive de si mesmo,

Não de cultivo alheio ou de presença.

Nada exige nem pede. Nada espera,

Mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,

Feitas de sofrimento e beleza.

Por aquelas mergulha no infinito,

E por estas suplanta a natureza.

Se em toda a parte o tempo desmorona

Aquilo que foi grande e deslumbrante,

O antigo amor, porém, nunca fenece

E a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.

Mais triste? Não. Ele venceu a dor,

E resplandece no seu canto obscuro,

Tanto mais velho quanto mais amor.

***

Carlos Drummond de Andrade
Foto: Acampamento Ágape, Campo Mourão-PR, 1975.

26/09/2009


A morte vem de longe

Do fundo dos céus

Vem para os meus olhos,

Virá para os teus.

Desce das estrelas

Das brancas estrelas

As loucas estrelas

Trânsfugas de Deus

Chega impressentida

Nunca inesperada

Ela que é na vida

A grande esperada!

A desesperada

Do amor fratricida

Dos homens, ai! dos homens

Que matam a morte

Por medo da vida.

****************

Vinicius de Moraes

25/09/2009

O tempo passa? Não passa


(Quadro: Richard S. Johnson)
**************
O tempo passa? Não passa


no abismo do coração.


Lá dentro, perdura a graça


do amor, florindo em canção.


O tempo nos aproxima


cada vez mais, nos reduz


a um só verso e uma rima


de mãos e olhos, na luz.


Não há tempo consumido


nem tempo a economizar.


O tempo é todo vestido


de amor e tempo de amar.


O meu tempo e o teu, amada,


transcendem qualquer medida.


Além do amor, não há nada,


amar é o sumo da vida.


São mitos de calendário


tanto o ontem como o agora,


e o teu aniversário


é um nascer toda hora.


E nosso amor, que brotou


do tempo, não tem idade,


pois só quem ama escutou


o apelo da eternidade.


*******************


Carlos Drummond de Andrade

24/09/2009

"A Casa Abandonada"


Abro a janela da minha alma e espio:

- tudo é negro, é completa a escuridão...

Nesse estranho lugar, triste e vazio,

hoje habita somente a solidão.

Há teias de saudade em cada canto,

e a poeira de um amor cobre o seu chão...

São sombrias as salas, - velho encanto

há nesse feio e escuro casarão.

Uma ruína em meu peito, abandonada,

com muros desbotados... cheios de hera...

- como um túmulo à beira de uma estrada,

que nada mais desta existência espera...

O tempo, pouco a pouco, já a consome,

- outrora, por exemplo - havia um nome

de mulher, no portal, mas se apagou...

Quantos homens como eu, na alma fechada,

vão levando uma casa abandonada

de onde alguém que partiu não mais voltou!..


(Poema de J. G. de Araujo Jorge,
extraído do livro"Meu Céu Interior", 1ª edição, setembro,1934.)

23/09/2009

"Poeminha Amoroso"


Este é um poema de amor

tão meigo, tão terno, tão teu...

É uma oferenda aos teus

momentos de luta e de brisa e de céu...

E eu,

quero te servir a poesia

numa concha azul do mar

ou numa cesta de flores do campo.

Talvez tu possas entender o meu amor.

Mas se isso não acontecer,

não importa.

Já está declarado e estampado

nas linhas e entrelinhas

deste pequeno poema,

o verso;

o tão famoso e inesperado verso que

te deixará pasmo,

surpreso, perplexo...

eu te amo, perdoa-me, eu te amo...


Foto: Sueli Batista Guides.

Cai chuva do céu cinzento



Cai chuva do céu cinzento
Que não tem razão de ser.
Até o meu pensamento
Tem chuva nele a escorrer.
Tenho uma grande tristeza
Acrescentada à que sinto.
Quero dizer-ma mas pesa
O quanto comigo minto.
Porque verdadeiramente
Não sei se estou triste ou não,
E a chuva cai levemente
(Porque Verlaine consente)
Dentro do meu coração.
.

Fernando Pessoa
in: Poesias Inéditas 

Imagem: gettyimages

22/09/2009

Soneto LXXXI


Já és minha. Repousa com teu sonho em meu sonho.
Amor, dor, trabalhos, devem dormir agora.
Gira a noite sobra suas invisíveis rodas
e junto a mim és pura como âmbar dormido.

Nenhuma mais, amor, dormirá com meus sonhos.
Irás, iremos juntos pelas águas do tempo.
Nenhuma mais viajará pela sombra comigo,
só tu, sempre-viva, sempre sol, sempre lua.

Já tuas mãos abriram os punhos delicados
e deixaram cair suaves sinais sem rumo,
teus olhos se fecharam como duas asas cinzas.

Enquanto eu sigo a água que levas e me leva:
a noite, o mundo, o vento enovelam seu destino,
e já não sou sem ti senão apenas teu sonho.


Pablo Neruda

21/09/2009

Sonetos Portugueses III


"Parte: não te separas? Que jamais

Sairei de tua sombra. Por distante

Que te vás, em meu peito, a cada instante,

Juntos dois corações batem iguais.

.
Não ficarei mais só. Nem nunca mais

Dona de mim, a mão, quando a levante,

Deixará de sentir o toque amante

Da tua, - ao que fugi. Parte: Não sais!

.
Como o vinho, que às uvas donde flui

Deve saber, é quanto faço e quanto

Sonho, que assim também todo te inclui.
.

A ti, amor! minha outra vida, pois

Quando oro a Deus, teu nome Ele ouve e o pranto

Em meus olhos são lágrimas de dois."
***

Elizabeth Browning Barret

Tradução de Manuel Bandeira
* gettyimages.com

20/09/2009

PRESENÇA


PRESENÇA

*************
É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,

teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento

das horas ponha um frêmito em teus cabelos...

É preciso que a tua ausência trescale

sutilmente, no ar, a trevo machucado,

as folhas de alecrim desde há muito guardadas

não se sabe por quem nalgum móvel antigo...

Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela

e respirar-te, azul e luminosa, no ar.

É preciso a saudade para eu sentir

como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida...

Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista

que nunca te pareces com o teu retrato...

E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.

***
Mário Quintana

19/09/2009

The Teahouse of the August Moon

"A Casa de Chá do Luar de Agosto" é um filme de 1956, dirigido por David Mann, com roteiro de John Patrick, baseado em livro de Vern J. Sneider.
Terminou a Segunda Guerra Mundial, Wainwright Purdy III (Paul Ford) é um coronel americano que comanda as tropas de ocupação no Japão e que está determinado a levar a cultura ocidental para os habitantes locais. O capitão Fisby (Glenn Ford ) é enviado ao vilarejo Tobiki em Okinawa para ensinar democracia à população, devendo construir uma escola, mas os alunos, depois de explicar ao mestre suas tradicões, tentam persuadi-lo a construir o que mais interessa a eles: uma casa de chá. Fisby chega a Tobiki disposto a implantar o modo de vida americano aos moradores da região, a organizar um clube social feminino e construir uma escola em forma de pentágono. Entretanto, acontece uma aculturação às avessas, pois Sakini (Marlon Brando), o guia e intérprete do capitão, conduz a situação do seu modo, fazendo Fisby assimilar os hábitos orientais.
Marlon Brando recebeu uma indicação ao Globo de Ouro de Melhor Ator - Comédia/Musical.

Minha nota: ****










18/09/2009

" Descoberta..."


" Descoberta..."



Aqui, sozinho,

percebo de repente

que a única coisa que sei fazer agora na vida

é te amar...

Minha vida se resume nesta angústia febril,

neste estranho tormento

de esperar pelo momento

em que vou novamente

te encontrar...



*************

J.G. de Araujo Jorge, do livro"A Sós..." 1a ed., 1958 )

17/09/2009

" E Os Teus Olhos Assim... "


"E Os Teus Olhos Assim... "


Nos teus olhos existe uma tortura imensa,

uma sombra de noite entre vagos clarões,

essa expressão inquieta e incerta de quem pensa

e vive o terror das interrogações...


E ao tempo que se esvai, cada vez mais se adensa

a noite em teu olhar ocultando aflições...

Parece que morreste, ou que sofres da doença

terrível da loucura ou das meditações...


A tua alma parou... A tua alma tão moça

não é como a água viva em loucas enxurradas,

mas como a água parada e morta de uma poça...


E os teus olhos assim... lembram, nessa negrura,

duas janelas rindo, aos céus, escancaradas,

numa casa vazia abandonada e escura!


( Poema de J.G. de Araújo Jorge, extraído do livro"Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou"Vol. I - 1a edição, 1965 )

16/09/2009

Soneto 116


De almas sinceras a união sincera

Nada há que impeça: amor não é amor

Se quando encontra obstáculos se altera

Ou se vacila ao mínimo temor.

.


Amor é um marco eterno, dominante,

Que encara a tempestade com bravura;

É astro que norteia a vela errante

Cujo valor se ignora, lá na altura.

.


Amor não teme o tempo, muito embora

Seu alfanje não poupe a mocidade;

Amor não se transforma de hora em hora,

.


Antes se afirma, para a eternidade.

Se isto é falso, e que é falso alguém provou,

Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou.

***


Shakespeare (Tradução de Bárbara Heliodora)
Foto: Foz do Iguaçu - Jan/2009 /Liz Guides)

14/09/2009

Metade


Que a força do medo que eu tenho,

não me impeça de ver o que anseio.

Que a morte de tudo o que acredito

não me tape os ouvidos e a boca.

Porque metade de mim é o que eu grito,

mas a outra metade é silêncio...

Que a música que eu ouço ao longe,

seja linda, ainda que triste...

Que a mulher que eu amo

seja para sempre amada

mesmo que distante.

Porque metade de mim é partida,

mas a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo

não sejam ouvidas como prece

e nem repetidas com fervor,

apenas respeitadas,
como a única coisa que resta

a um homem inundado de sentimentos.

Porque metade de mim é o que ouço,

mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora

se transforme na calma e na paz

que eu mereço.

E que essa tensão

que me corrói por dentro

seja um dia recompensada.

Porque metade de mim é o que eu penso,

mas a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste

e que o convívio comigo mesmo

se torne ao menos suportável.

Que o espelho reflita em meu rosto,

um doce sorriso,

que me lembro ter dado na infância.

Porque metade de mim

é a lembrança do que fui,

a outra metade eu não sei.

Que não seja preciso

mais do que uma simples alegria

para me fazer aquietar o espírito.

E que o teu silêncio

me fale cada vez mais.

Porque metade de mim

é abrigo, mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta,

mesmo que ela não saiba.

E que ninguém a tente complicar

porque é preciso simplicidade

para fazê-la florescer.

Porque metade de mim é platéia

e a outra metade é canção.

E que a minha loucura seja perdoada.

Porque metade de mim é amor,

e a outra metade...

também.

********

13/09/2009


Põe-me as mãos nos ombros...

Beija-me na fronte...

Minha vida é escombros,

A minha alma insonte.


Eu não sei por quê,

Meu desde onde venho,

Sou o ser que vê,

E vê tudo estranho.



Põe a tua mão

Sobre o meu cabelo...

Tudo é ilusão.

Sonhar é sabê-lo.

**************

Fernando Pessoa

12/09/2009

Para meu coração

Para meu coração teu peito basta,
para que sejas livre, minhas asas.
De minha boca chegará até o céu
o que era adormecido na tua alma.
Mora em ti a ilusão de cada dia
e chegas como o aljôfar às corolas.
Escavas o horizonte com tua ausência,
eternamente em fuga como as ondas.
Eu disse que cantavas entre vento
como os pinheiros cantam, e os mastros
tu és como eles alta e taciturna.
Tens a pronta tristeza de uma viagem.
Acolhedora como um caminho antigo,
povoam-te ecos e vozes nostálgicas.
Despertei e por vezes emigram e fogem
pássaros que dormiam em tua alma.

11/09/2009

Casablanca


Neste filme de 1942, dirigido por Michel Curtiz, Casablanca é a rota obrigatória de quem está fugindo dos nazistas na Segunda Guerra Mundial. É lá que Rick (Humphrey Bogart) vai reencontrar Ilsa (a belíssima Ingrid Bergman), anos depois de terem se apaixonado e se perdido em Paris, mas agora ela está casada com o herói Victor Laszlo (Paul Henreid).
Recebeu 3 Oscars: Melhor Filme, Melhor Diretor e Melhor Roteiro. Foi ainda indicado em outras 5 categorias: Melhor Ator (Humphrey Bogart), Melhor Ator Coadjuvante (Claude Rains), Melhor Fotografia, Melhor Edição e Melhor Trilha Sonora para Comédia/Musical.
Minha nota: *****

09/09/2009

"Oh, Como te Amo! Como à Luz do dia! "


Oh, como te amo! Como à luz do dia!
Teu nome invoco, apaixonada e triste,
e quando a noite veio, e tu partiste,
minha alma em ânsias ainda te pedia!
.
És para mim o tempo que me guia,
a idéia que ao meu pensamento assiste
porque em ti se concentra quanto existe:
a esperança, a paixão, minha poesia.
.
Não há canto que iguale em força e alento,
o teu amor, se sonhas e deliras;
num doce instante de arrebatamento...
.
Tremo ao te ouvir. Se me olhas tu me inspiras!
E quisera exalar o último alento,
abrasada ao calor do ar que respiras.
***
Carolina Coronado (1823-1911)
****************************
http://www.youtube.com/watch?v=U3BAkmUd5pc

06/09/2009

Noite


As casas fecham as pálpebras das janelas e dormem.
Todos os rumores são postos em surdina,
todas as luzes se apagam.
Há um grande aparato de câmara funerária
na paisagem do mundo.
Os homens ficam rígidos,
tomam a posição horizontal
e ensaiam o próprio cadáver.
Cada leito é a maquete de um túmulo.
Cada sono em ensaio de morte.
No cemitério da treva
tudo morre provisoriamente.
.........
Menotti del Picchia
São Paulo, SP, Brasil 1892 (*) - 1961 (+)

05/09/2009

Traduzir-se


Uma parte de mim

é todo mundo:

outra parte é ninguém:

fundo sem fundo.

Uma parte de mim

é multidão:

outra parte estranheza

e solidão.

Uma parte de mim

pesa, pondera:

outra parte

delira. Uma parte de mim

almoça e janta:outra parte

se espanta.Uma parte de mim

é permanente:outra parte

se sabe de repente.

Uma parte de mim

é só vertigem: outra parte,

linguagem. Traduzir uma parte

na outra parte

- que é uma questão

de vida ou morte

- será arte?


*********

Ferreira Gullar
Crédito da imagem: gettyimages.com

04/09/2009

" Coração Partido "


Acreditei que o coração já estava


curado para sempre. E já o havia


encantado com a música, a poesia


alta e pura, que à lira dedilhava.

.


E por onde eu seguia, onde eu passava,


a gentil primavera refloria;


- sonhos de paz e cantos de alegria,


a luz do sol em meu rincão entrava.


.

Mas, entre as rosas, eis que tu surgiste


como sempre, a sorrir, ó inconstante!


jogando redes, preparando laços...


.

E o meu altivo olhar tornou-se triste,


e o pobre coração, de novo, amante


outra vez aos teus pés fez-se em pedaços...




***


Juan Ramón Jiménez (poeta espanhol, 1881-1958)

Tradução de J. G. de Araújo Jorge
Créditos da imagem: gettyimages.com

03/09/2009


"Não fique

triste nas despedidas.

Uma despedida é necessária antes

de vocês poderem se encontrar

outra vez.

E se encontrar de novo,

depois de momentos ou

de vidas, é certo para

os que são amigos."

***


Richard Bach (Ilusões)

02/09/2009

Sono e sonho


Entre o sono e sonho,

Entre mim e o que em mim

É o quem eu me suponho

Corre um rio sem fim.


Passou por outras margens,

Diversas mais além,

Naquelas várias viagens

Que todo o rio tem.


Chegou onde hoje habito

A casa que hoje sou.

Passa, se eu me medito;

Se desperto, passou.


E quem me sinto e morre

No que me liga a mim

Dorme onde o rio corre

- Esse rio sem fim.

..............................
Fernando Pessoa, 11-9-1933

01/09/2009

" Meu Primeiro Amor "


O meu amor primeiro... o meu primeiro amor,
foi anseio, e viveu na incerteza de uma ânsia,
-botão que não se abriu... que não chegou a flor,
-um pedaço de céu, quase limpo e sem cor
perdido nos senfins azuis da minha infância...
.
Silhueta a se apagar, mas que o meu Ser divisa,
uma emoção feliz que nem foi emoção...
-nuvem leve a fugir aos impulsos da brisa,
tênue... vaga... sutil... bem distinta e imprecisa,
passando na memória do meu coração...
.
O meu primeiro amor, - um vulto que esqueci
num canto da lembrança a dormir empoeirado,
-um rosto que apagou porque nunca mais vi,
-um quadro que se esvai, e que deixei ali
esquecido no sótão velho de um passado...
.
Alma de uma ilusão pequenina e simplória
que se dissolve em mim... e aos poucos se desfaz...
parece outro destino, outra vida, outra história,
quando o tento arrancar das sombras da memória
tão longe... que ao lembrar-me... eu nem me lembro mais...
.
O meu primeiro amor... A primeira esperança
que abriu asas de sonho a procurar o além,
- hoje, é apenas lembrança a brincar na lembrança
levado na tristeza do que não se alcança,
na saudade de tudo o que nunca mais vem!
.
Pétala que entre um livro amarelou, perdida,
há muito tempo, há muito tempo... por alguém que o leu,
- e hoje, ao encontrá-la, seca e fenecida
no romance sem fim da minha própria vida
nem sei se quem a pôs entre as folhas fui eu...
.
O meu primeiro amor... O meu amor primeiro,
foi uma história azul dessas de "era uma vez"...
- uma história feliz... um conto verdadeiro
que um dia o meu Destino, um velho feiticeiro,
quis fazer mas não soube terminar talvez...
.
Minha glória primeira... e o meu maior desejo
de crescer, de subir, de explicar o Universo!
Passou... Foge de mim... mas ainda o sinto e o vejo,
- porque ele é a sensação do meu primeiro beijo
e a impressão imortal do meu primeiro verso!
***
J. G. de Araújo Jorge, extraído do livro"Bazar de Ritmos".