30/11/2010

Paraíso Perdido

  Penso isto: penso que devemos fugir para nós mesmos.

Não são apenas os amigos que nos levam sem reação,

são os cinemas, os teatros, as horas que perdemos nas ruas

quando nosso quarto se fecha silencioso, sem tempo

e esperanças.

Não são apenas as horas que o trabalho me rouba

inapelavelmente, e que não me serão devolvidas.

É a nossa vida, feita sem tempo e de desencontros,

sem pausa para a criação, sem paz para o recolhimento,

sem silêncio para o pensamento, sempre ininterrupta,

passando por nós, enquanto nos deixamos ficar sem alcançá-la...

Penso isto: só a fuga para nós mesmos seria a salvação.

Conheço um amigo pintor que se encontrou em Itatiaia

e ouve o canto dos pássaros e das águas junto às Agulhas Negras.

Meu amor: sinto que vamos chegando à hora em que

devemos voltar ao Paraíso,

ou jamais o reconquistaremos.

(Poema de J. G. de Araujo Jorge,

do livro Antologia Poética - 1978 )

29/11/2010

A hora da partida


A hora da partida soa quando

Escurece o jardim e o vento passa,

Estala o chão e as portas batem, quando

A noite cada nó em si deslaça.


A hora da partida soa quando

as árvores parecem inspiradas

Como se tudo nelas germinasse.


Soa quando no fundo dos espelhos

Me é estranha e longínqua a minha face

E de mim se desprende a minha vida.


Sophia de Mello Breyner Andresen
poetisa portuguesa






28/11/2010

"Lírica Nº 38 "



Que voltes antes de anoitecer...
Antes que as sombras desçam irremediavelmente

sobre o coração.

Que eu ainda te possa ver refletida em meus olhos,

e ainda reconheças as pegadas de antes

indeléveis, no chão.

J. G. de Araújo Jorge


27/11/2010

Amor


O ser busca o outro ser, e ao conhecê-lo

acha a razão de ser, já dividido.

São dois em um: amor, sublime selo

que à vida imprime cor, graça e sentido.



"Amor" - eu disse - e floriu uma rosa

embalsamando a tarde melodiosa

no canto mais oculto do jardim,

mas seu perfume não chegou a mim.

Carlos Drummond de Andrade
1985 - AMAR SE APRENDE AMANDO

26/11/2010

Aqui se está sossegado...

Aqui está-se sossegado,

Longe do mundo e da vida,

Cheio de não ter passado,

Até o futuro se olvida.

Aqui está-se sossegado.

Tinha os gestos inocentes,

Seus olhos riam no fundo.

Mas invisíveis serpentes

Faziam-a ser do mundo.

Tinha os gestos inocentes.

Aqui tudo é paz e mar.

Que longe a vista se perde

Na solidão a tornar

Em sombra o azul que é verde!

Aqui tudo é paz e mar.

Sim, poderia ter sido...

Mas vontade nem razão

O mundo têm conduzido

A prazer ou conclusão.

Sim, poderia ter sido...

Agora não esqueço e sonho.

Fecho os olhos, oiço o mar

E de ouvi-lo bem, suponho

Que veio azul a esverdear.

Agora não esqueço e sonho.

Não foi propósito, não.

Os seus gestos inocentes

Tocavam no coração

Como invisíveis serpentes.

Não foi propósito, não.

Durmo, desperto e sozinho.

Que tem sido a minha vida?

Velas de inútil moinho —

Um movimento sem lida...

Durmo, desperto e sozinho.

Nada explica nem consola.

Tudo está certo depois.

Mas a dor que nos desola,

A mágoa de um não ser dois

Nada explica nem consola.

Fernando Pessoa,
in: Poesias Inéditas.


















































25/11/2010

MORRO DO QUE HÁ NO MUNDO





Morro do que há no mundo:
do que vi, do que ouvi.
Morro do que vivi.
Morro comigo, apenas:
com lembranças amadas,
porém desesperadas.
Morro cheia de assombro
por não sentir em mim
nem princípio nem fim.
Morro: e a circunferência
fica, em redor, fechada.
Dentro sou tudo e nada.

(Poesias completas de Cecília Meireles)




24/11/2010

VIDA É UMA VITRINA...

A VIDA É UMA VITRINA...

Graciette Salmon (Poetisa Paranaense)



A Vida é uma vitrina de tecidos.

A gente, por instantes,

fica de olhos perdidos

na beleza das telas deslumbrantes.

Depois, entra na loja e vai comprar.

Caixeirinha gentil, a Ilusão

vem vender ao balcão

e não se cansa de mostrar,

não se cansa

de exibir delicados,

rendilhados,

leves panos de Sonho e de Esperança.

As mãos tocam de leve

na leveza das telas.

Não vá o gesto, por mais breve,

esgarçar uma delas!

Todas tão lindas! Mas a que fascina

não está ali na grande confusão

das peças espalhadas no balcão.

E a gente diz,

num ar feliz:

"Levo daquela rósea, muito fina,

exposta na vitrina."

Logo o Destino vem (da loja é o dono)

e fala sobranceiro, com entono:

"É artigo raro.

Marca, padrão e cor: - Felicidade.

É um artigo de alta qualidade

o mais caro

de todos os tecidos.

São cortes especiais...e estão vendidos!"

...................................................................

E a gente vai comprar do áspero pano

que se encontra na seção do Desengano.

23/11/2010

Arte do chá

ainda ontem
convidei um amigo

para ficar em silêncio

comigo

ele veio

meio a esmo

praticamente não disse nada

e ficou por isso mesmo

Paulo Leminski





22/11/2010

A tua voz fala amorosa...

Qual é a tarde por achar
Em que teremos todos razão
E respiraremos o bom ar
Da alameda sendo verão,

Ou, sendo inverno, baste 'star
Ao pé do sossego ou do fogão?
Qual é a tarde por voltar?
Essa tarde houve, e agora não.

Qual é a mão cariciosa
Que há de ser enfermeira minha -
Sem doenças minha vida ousa -
Oh, essa mão é morta e osso... 
Só a lembrança me acarinha
O coração com que não posso.

Fernando Pessoa 

21/11/2010

Expectativas


tudo começa
do mesmo jeito
diferente

o que se quebra
pesa mais
do que o sonho leva

como se o dia
não passasse
dessa noite

Alice Ruiz


(do "Dois em Um)

20/11/2010

Para atravessar contigo o deserto do mundo

Para atravessar contigo o deserto do mundo

Para enfrentarmos juntos o terror da morte.

Para ver a verdade, para perder o medo,

Ao lado dos teus passos caminhei.

Por ti deixei meu reino meu segredo,

Minha rápida noite, meu silêncio,

Minha pérola redonda e seu oriente

Meu espelho, minha vida, minha imagem,

E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro.

Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo.

Por isso com teus gestos me vestiste

E aprendi a viver em pleno vento.


(Sophia de Mello Breyner Andresen, in Livro Sexto)


19/11/2010

Catastrophe


Au Japon,
Un papillon
Se pose doucement
Sur l'estampe du salon.

Et à l'outre bout du monde,
Un grand vent
Se lève sur l'Ocean.

18/11/2010

Uma vez




Ama-se uma vez só. Mais de um amor

de nada serve e nada o justifica.

Um só amor absolve, santifica.

Quem ama uma só vez ama melhor.



Qualquer pessoa, seja lá quem for,

se a uma outra pessoa se dedica,

só com essa ternura será rica

e qualquer outra julgará pior...



Há dois amores? Qual é o verdadeiro?

Se há segundo, que é feito do primeiro?

Esta contradição quem foi que fez?



Quem ama assim julga que amou;

mas pode acreditar que se enganou

ou da primeira ou da segunda vez?



Virgínia Victorino




























16/11/2010

One day in your life- Michael Jackson

Mar em redor

Meus ouvidos estão como as conchas sonoras:

música perdida no meu pensamento,

na espuma da vida, na areia das horas...

Esqueceste a sombra no vento.

Por isso, ficaste e partiste,

e há finos deltas de felicidade

abrindo os braços num oceano triste.

Soltei meus anéis nos aléns da saudade.

Entre algas e peixes vou flutuando a noite inteira.

Almas de todos os afogados

chamam para diversos lados

esta singular companheira.



Cecília Meireles

14/11/2010

A uma ausência

Sinto-me, sem sentir, todo abrasado

no rigoroso fogo que me alenta;

o mal que me consome me sustenta;

o bem que me entretém me dá cuidado.


Ando sem me mover, falo calado;

o que mais perto vejo se me ausenta,

e o que estou sem ver mais me atormenta;

alegro-me de ver-me atormentado.


Choro no mesmo ponto em que me rio;

no mor risco que me anima a confiança;

do que menos se espera estou mais certo.


Mas se de confiado desconfio,

é porque, entre os receios da mudança,

ando perdido em mim como em deserto.

Antonio Barbosa Bacelar

Século XVIII








12/11/2010

A hora do cansaço

A hora do cansaço


As coisas que amamos,

as pessoas que amamos

são eternas até certo ponto.

Duram o infinito variável

no limite de nosso poder

de respirar a eternidade.


Pensá-las é pensar que não acabam nunca,

dar-lhes moldura de granito.

De outra matéria se tornam, absoluta,

numa outra (maior) realidade.


Começam a esmaecer quando nos cansamos,

e todos nós cansamos, por um outro itinerário,

de aspirar a resina do eterno.

Já não pretendemos que sejam imperecíveis.

Restituímos cada ser e coisa à condição precária,

rebaixamos o amor ao estado de utilidade.



Do sonho de eterno fica esse gosto ocre

na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.

Carlo Drummond de Andrade
(1984 - CORPO)

Reverência


Se não fosse você, eu andaria


a caminho do nada,


pra lugar nenhum.


Eu erraria por entre vagas abertas,


sobre páginas incertas


de um pobre verso comum.


Se não fosse você, eu perderia


a noção do sol e do vento,


de todo e qualquer elemento


que me induzisse à beleza.


Se não fosse você, eu ficaria presa


na trama dos desafetos,


dos amores incompletos


que o mundo encaixa nos cantos.


Se não fosse você, triste seria


e a memória por certo contaria


minha historia na pobreza de um clichê.


.....e eu certamente me demitiria


dos ternos devaneios da poesia.


Que seria de mim, se não fosse você?




Flora Figueiredo

11/11/2010

A vida que eu sonhei...

Eu sonhei para mim, uma vida discreta
num lugar bem distante, a sós, tendo-te ao lado
- num castelo que fiz lá num reino encantado,
nesse reino que eu chamo o coração de um poeta.

..Sonhei... Vi-me feliz na solidão de asceta,
bem longe deste mundo, a rir, despreocupado...
- acordando a escutar no arvoredo o trinado
das aves, e a dormir fitando a lua inquieta...

Vivia na ilusão daquele que ainda crê,
na vida, e o meu amor, eu o tinha idealizado
no romance de um lar coberto de sapê...

Mentiras que eu sonhei!... No entanto hoje me ponho
muita vez a pensar no tal reino encantado
e sinto uma saudade imensa do meu sonho!...
***
J. G. de Araújo Jorge

10/11/2010

Destino

Destino

Pastora de nuvens, fui posta a serviço
por uma campina desamparada
que não principia nem também termina,
e onde nunca é noite e nunca madrugada.
(Pastores da terra, vós tendes sossego,
que olhais para o sol e encontrais direção.
Sabeis quando é tarde, sabeis quando é cedo.
Eu, não.)
Pastora de nuvens, por muito que espere,
não há quem me explique meu vário rebanho.
Perdida atrás dele na planície aérea,
não sei se o conduzo, não sei se o acompanho.
(Pastores da terra, que saltais abismos,
nunca entendereis a minha condição.
Pensais que há firmezas, pensais que há limites.
Eu, não.)
Pastora de nuvens, cada luz colore
meu canto e meu gado de tintas diversas.
Por todos os lados o vento revolve
os velos instáveis das reses dispersas.
(Pastores da terra, de certeiros olhos,
como é tão serena a vossa ocupação!
Tendes sempre o início da sombra que foge...
Eu, não.)
Pastora de nuvens, não paro nem durmo
neste móvel prado, sem noite e sem dia.
Estrelas e luas que jorram, deslumbram
o gado inconstante que se me extravia.
(Pastores da terra, debaixo de folhas
que entornam frescura num plácido chão,
Sabeis onde pousam ternuras e sonos.
Eu, não.)
Pastora de nuvens, esqueceu-me o rosto
do dono das reses, do dono do prado.
E às vezes parece que dizem meu nome,
que me andam seguindo, não sei por que lado.
(Pastores da terra, que vedes pessoas
sem serem apenas de imaginação,
podeis encontrar-vos, falar tanta coisa!
Eu, não.)
Pastora de nuvens, com a face deserta,
sigo atrás de formas com feitios falsos,
queimando vigílias na planície eterna
que gira debaixo dos meus pés descalços.
(Pastores da terra, tereis um salário,
e andará por bailes vosso coração.
Dormireis um dia como pedras suaves.
Eu, não.)
 
Cecília Meireles

09/11/2010

Se Eu Não Te Amasse Tanto Assim


Se Eu Não Te Amasse Tanto Assim
Composição: Paulo Sergio Valle / Herbert Vianna

Meu coração
Sem direção
Voando só por voar
Sem saber onde chegar
Sonhando em te encontrar
E as estrelas
Que hoje eu descobri
No seu olhar
As estrelas vão me guiar
Se eu não te amasse tanto assim
Talvez perdesse os sonhos
Dentro de mim
E vivesse na escuridão
Se eu não te amasse tanto assim
Talvez não visse flores
Por onde eu vim
Dentro do meu coração
Hoje eu sei
Eu te amei
No vento de um temporal
Mas fui mais
Muito além
Do tempo do vendaval
Nos desejos
Num beijo
Que eu jamais provei igual
E as estrelas dão um sinal
Se eu não te amasse tanto assim
Talvez perdesse os sonhos
Dentro de mim
E vivesse na escuridão
Se eu não te amasse tanto assim
Talvez não visse flores
Por onde eu vim
Dentro do meu coração...

08/11/2010

Anoitecer

Amiudam-se as partidas...
Também morremos um pouco
no amargor das despedidas.
Cais deserto, anoitecemos

enluarados de ausências.

Helena Kolody 

07/11/2010

Canção de Amor




Como hei-de segurar a minha alma

para que não toque na tua? Como hei-de

elevá-la acima de ti, até outras coisas?

Ah, como gostaria de levá-la

até um sítio perdido na escuridão

até um lugar estranho e silencioso

que não se agita, quando o teu coração treme.

Pois o que nos toca, a ti e a mim,

isso nos une, como um arco de violino

que de duas cordas solta uma só nota.

A que instrumento estamos atados?

E que violinista nos tem em suas mãos?

Oh, doce canção.

 Rainer Maria Rilke

06/11/2010

Canção I




Nunca eu tivera querido
dizer palavra tão louca:
bateu-me o vento na boca,
e depois no teu ouvido.
Levou somente a palavra
deixou ficar o sentido.
O sentido está guardado
no rosto com que te miro,
neste perdido suspiro
que te segue alucinado,
no meu sorriso suspenso
como um beijo malogrado.
Nunca ninguém viu ninguém
que o amor pusesse tão triste.
Essa tristeza não viste,
e eu sei que ela se vê bem...
Só que aquele mesmo vento
fechou teus olhos, também...

Cecília Meireles