24/05/2010

Carta a um amor impossível (II)


"Minha vontade é a tua! E meu destino enredo

no teu!... És o meu deus! Teu desejo é o meu credo!

Creio na tua força e no teu pensamento,

e nem um só segundo e nem um só momento

deixarei de seguir-te aonde quer que tu fores,

seja a estrada coberta de espinhos ou flores,

te aureole a fronte a glória e te sirva a riqueza

ou vivas no abandono e sofras na pobreza!

Serei outra Eleonora Duse, e te amarei

com um amor infinito, sem razão nem lei.

Tu serás o meu Poeta imortal, - meu Senhor,

a quem entregarei minha alma e o meu amor!




Creio na tua força e no teu pensamento!

- faço dela um arrimo, e tenho nele o alento

da única razão que dirige meus atos;

- é a lógica fatal das cousas e dos fatos!

Orgulho-me de ser a matéria plasmável

onde o teu gênio inquieto, e nervoso, e insaciável,

há de esculpir uma obra à tua semelhança!

Junto a ti sou feliz e me sinto criança

curiosa de te ouvir, fascinada e atraída

pela tua palavra alegre e colorida!

E se falas da vida ou se o mundo desvendas

os assuntos ressoam na alma como lendas

e tudo é novo e é belo, e tudo prende e atrai,
de um simples botão que se abre a um pingo d'água que cai.

Há em tudo uma alma nova! Há em tudo um novo encanto!

Tantas vezes te ouvi! E sempre o mesmo espanto

quando tu me dizias, que era tarde, era a hora

em que eu ia dormir em que te ias embora...

Muitas vezes, deitada, - eu rezava baixinho

uma prece que fiz só para o meu carinho:

com meus beijos de amor matarei tua sede,

com os meus cabelos tecerei a rede

onde adormecerás feliz, imaginando

que é a noite que te envolve e te embala cantando;
formarei com os meus braços o ninho amoroso

onde terás na volta o almejado repouso;

minhas mãos te darão o mais terno carinho

e julgarás que é o vento a soprar de mansinho

sussurrando canções e desfeito em desvelos

a desmanchar de leve os teus claros cabelos!

No meu seio, - que a uma onda talvez se pareça,

recostarei feliz, enfim, tua cabeça,

e nada, nenhum ruído há de te perturbar!

- meu próprio coração mais baixo há de pulsar...

Quando o sol castigar as frondes e as raízes

com o meu corpo farei a sombra que precises,

e se o inverno chegar, ou se sentires frio,

em mim hás de achar todo o calor do estio!





Não te rias, - bem sei que te digo tolices,

mas ah! se compreendesses tudo, ou se sentisses

a alegria que sinto ao te falar assim,

talvez que não te risses, meu amor, de mim...

Isto tudo, - é obra apenas da fatalidade,

- quando o amor é uma doença e é uma febre a saudade."

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 Tua carta é uma frase inteira de ternura,

como uma renda fina, cuja tessitura

trai a mão delicada e a alma de quem a fez

Ela é bem a expressão da mulher, que uma vez...

(mas não, não recordemos estas cousas mais,

- para o teu bem, deixemos o passado em paz

se o não posso trazer num augúrio feliz

para a prolongação de um sonho que eu desfiz...)





Tua carta é o reflexo da tua beleza,

e há no seu ofertório a singela pureza

desse amor que te empolga e te invade e domina!

(Uma alma de mulher num corpo de menina!)

Reli-a muito, a sós... - Mais adiante tu dizes,

com esse místico dom das criaturas felizes:

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"Amo, para a alegria suprema e indizível

de humilhar-me aos teus pés tanto quanto possível,

e viverei feliz, como a poeira da estrada

se erguer-me ao teu passar, numa nuvem dourada

cheia de sol e luz, - nessa glória fugaz

de acompanhar-te os passos aonde quer que vás!

Não importa que eu role depois no caminho,

não importa que eu fique abandonada e só,

- quem nasceu para espinho há de ser sempre espinho!...

- quem nasceu para pó, há de sempre ser pó!"
..............................................................................



 Faz-me mal tua carta, muito mal... Receio


pelo amor infeliz que abrigaste em teu seio,

e uma angústia mortal me oprime e me castiga,

deixa que te confesse, oh! minha pobre amiga!



Não pensei... Não pensei que te afeiçoasses tanto,

nem desejava ver a tristeza do pranto

ensombrecer teus olhos... Quando tu partiste,

não compreendia bem por que ficaste triste

nem quis acreditar no que estavas sentindo...

Hoje, - hoje eu descubro que o teu sonho lindo

era mais do que um sonho, - era mesmo, em verdade

uma grande esperança de felicidade!





Me perdoarás no entanto... ah! não fosses tão boa!

E eu insisto de joelhos a teus pés: - perdoa!

Se eu soubesse, ou se ao menos eu adivinhasse

o que não pude ver além de tua face

e o que não soube ler velado em teu olhar,

não teria deixado esse amor te empolgar...

Perdoa o involuntário mal que te causei!

A carta que escreveste, e há bem pouco guardei,

um grande mal também causou-me sem querer:

- é bem rude e bem triste a gente perceber

que encontrou seu ideal, - o seu ideal mais belo,

- e o destruir, tal como eu, que agora o desmantelo!

É doloroso a gente em mil anos sonhá-lo

e inesperadamente ter que abandoná-lo!





Se algum amor eu quis, esse era igual ao teu

que tudo me ofertou e nada recebeu;

ingênuo e puro amor, simples, sem artifícios,

capaz como bem dizes "de mil sacrifícios,

e de mil concessões, chorando muito embora,

só para ver feliz o ente que quer e adora!"





E pensar que isso tudo que tu me ofereces:

-teu raro e imenso amor, teus beijos, tuas preces,

a tua alma de criança ainda em primeiro anseio;

e o teu corpo, onde a forma ondulante do seio

não atingiu sequer seu máximo esplendor;

tua boca, ainda pura aos contatos do amor;

- e dizer que isso tudo, isso tudo afinal

que era o meu velho sonho e o meu maior ideal,

abandono, desprezo, renuncio e largo

com um gesto vil como este, indiferente e amargo!





Enfim, já estás vingada... E porque ainda és criança

há de este falso amor te ficar na lembrança

como uma experiência... (a primeira vencida

das muitas que talvez ainda encontres na vida...)

E um dia então... - quem sabe se não será breve?

- descobrirás na vida aquele amor que deve

transformar teu destino e realizar teu sonho...

Antevendo esse dia de festa, risonho,

comporei, como um véu de noiva, para as bodas,

a mais bela poesia, a mais bela de todas...

(... Recebendo-a, dirás, esquecida e contente:

- "quem teria enviado este estranho presente?")





Sé feliz, minha amiga ... eu me despeço aqui...

Lamento o meu destino, porque te perdi

e maldigo esta carta pelo que ela diz...

Não chores, - porque eu sei que ainda serás feliz...

E que as lágrimas de hoje, - enxuguem-se ao calor

de um verdadeiro, eterno e imorredouro amor!



P. S. - Sê feliz. Amanhã tudo isto será lenda ...
E pede a Deus, por mim, - que eu nunca me arrependa...
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J. G. de Araújo Jorge - do livro
(Eterno Motivo)

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