31/10/2009

Tuas mãos




Tuas mãos






Quando tuas mãos saem,


amada, para as minhas,


o que me trazem voando?


Por que se detiveram


em minha boca, súbitas,


e por que as reconheço


como se outrora então


as tivesse tocado,


como se antes de ser


houvessem percorrido


minha fronte e a cintura?






Sua maciez chegava


voando por sobre o tempo,


sobre o mar, sobre o fumo,


e sobre a primavera,


e quando colocaste


tuas mãos em meu peito,


reconheci essas asas


de paloma dourada,


reconheci essa argila


e a cor suave do trigo.






A minha vida toda


eu andei procurando-as.


Subi muitas escadas,


cruzei os recifes,


os trens me transportaram,


as águas me trouxeram,


e na pele das uvas


achei que te tocava.


De repente a madeira


me trouxe o teu contacto,


a amêndoa me anunciava


suavidades secretas,


até que as tuas mãos


envolveram meu peito


e ali como duas asas


repousaram da viagem.







30/10/2009

CREPÚSCULO


E lá se foi, correndo, a mocidade,

entre horas de amor e de tortura,

como um farrapo de felicidade

que, embora longe, a gente inda procura...

.

E nesse procurar, é com saudade

que recomponho instantes de ventura...

e o sofrimento que o meu peito invade

põe em meus lábios versos de ternura...

.

É que, no caminhar para a velhice,

sinto que não passaram de tolice

os anseios de amar e ser amado...

.

Pois tive, no caminho percorrido,

pela glória de muito haver sofrido,

a amargura de muito haver sonhado...

***

Ciro Vieira da Cunha

29/10/2009

Almas paralelas


Alma irmã de minh'alma, espelho vivo

de outro espelho fiel, que te retrata;

alma de luz serena e intemerata,

cujo influxo de amor me tem cativo!

.

Bem sinto que em mim vives e em ti vivo;

no entanto (e eis o desgosto que me mata!)

de amor a doce vaga me arrebata,

e não posso atingir teu vulto esquivo.

.

O mesmo curso tem nossos destinos,

do gozo, o mel; da dor, os desatinos,

a um nada inspiram, sem que o outro inspirem;

.

mas, triste some! Ó bela entre as mais belas!

Eles são como duas paralelas:

- próximos correm, sem jamais se unirem!

>>>>

Antonio Augusto de Lima

(1860/1934)

28/10/2009

"Carta"


"Carta"

******

Aqui, tudo é bonito e quieto, a gente

vai vivendo uma vida sempre igual...

- Há um dia que o regato de cristal

de águas turvas ficou devido à enchente...

.


Os dias têm passado, lentamente,

e um tédio sinto em mim, de um modo tal,

que às vezes, fico até sentimental,

lembrando-me de ti, saudosamente...

.


Quando estavas aqui, - tudo era lindo...

Como um doce casal de beija-flores,

vivíamos os dois sempre sorrindo...

.


Por que não voltas?... Vem!... - Se tu voltares

o céu há de cobrir-se de outras cores...

- as flores voltarão pelos pomares!...

.............


J. G. de Araujo Jorge Jorge

27/10/2009

Coração


Coração é terra que ninguém vê


Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Sachei, mondei - nada colhi.
Nasceram espinhos
e nos espinhos me feri.
Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Cavei, plantei.
Na terra ingrata
nada criei. Semeador da Parábola...
Lancei a boa semente
a gestos largos...
Aves do céu levaram.
Espinhos do chão cobriram.
O resto se perdeu
na terra dura da ingratidão.
Coração é terra que ninguém vê - diz o ditado.
Plantei, reguei, nada deu, não.
Terra de lagedo, de pedregulho,
- teu coração. Bati na porta de um coração.
Bati. Bati. Nada escutei.
Casa vazia. Porta fechada,
foi que encontrei...


Cora Coralina
(Cidade de Goiás, 20 de agosto de 1889 — Goiânia, 10 de abril de 1985)

26/10/2009

"Essa Aritmética..."


"Essa Aritmética..."

##############

Antes, eu era apenas metade

de um Ser, a pervagar sem rumo certo,

à procura ideal dessa unidade

que é como um novo mundo descoberto.

Enquanto sós, que somos? Um deserto

a nos pesar com sua imensidade,

existir só começa, a céu aberto,

quando dois são um só - eis a verdade!

Eu vinha por aí, aos solavancos,

como se diz: aos trancos e barrancos,

um pedaço a rolar, uma metade

de um Ser, mas quis a sorte, nos achamos,

e ao nos somarmos, nos multiplicamos

nessa aritmética da felicidade.

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J. G. de Araújo Jorge

25/10/2009

Fatalidade


Sonhei, amei, pela existência afora,

na dourada ilusão da primavera

e muito mais sonhara, se pudera

e mais amara, permitido fora.

.

Sonhei, amei, cantei, sabendo embora

que pelo mundo imenso da quimera

a treva do horizonte se apodera

e o perfume das flores se evapora.

.

Afinal, pelo abismo em que resvalo,

talvez o desengano foi meu prêmio

e quem fora capaz de desejá-lo?

.

No desengano imenso que me inquieta,

eu vou vivendo ao léu, como um boêmio

e vou sonhando sempre, como um poeta.

*****

Affonso Montenegro Louzada

24/10/2009

Eu sei que vou te amar

Eu Sei Que Vou te Amar

Composição: Tom Jobim / Vinícius de Moraes

Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida eu vou te amar
Em cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente, eu sei que vou te amar
E cada verso meu será
Prá te dizer que eu sei que vou te amar
Por toda minha vida
Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que esta ausência tua me causou
Eu sei que vou sofrer
a eterna desventura de viver
A espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida...

Árvores do Alentejo


Árvores do Alentejo

*********************


Horas mortas... curvadas aos pés do Monte

A planície é um brasido... e, torturadas,

As árvores sangrentas, revoltadas,

Gritam a Deus a bênção duma fonte!



E quando, manhã alta, o sol postonte

A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,

Esfíngicas, recortam desgrenhadas

Os trágicos perfis no horizonte!



Árvores! Corações, almas que choram,

Almas iguais à minha, almas que imploram

Em vão remédio para tanta mágoa!



Árvores! Não choreis! Olhai e vede:

-Também ando a gritar, morta de sede,

Pedindo a Deus a minha gota de água!

_______________________


Florbela Espanca

23/10/2009

Eu não existo sem você


Eu não existo sem você

***
Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim,

Que nada nesse mundo levará você de mim.

Eu sei e você sabe que a distância não existe

Que todo grande amor

Só é bem grande se for triste.

Por isso, meu amor

Não tenha medo de sofrer

Que todos os caminhos

Me encaminham pra você.

Assim como o oceano

Só é belo com luar

Assim como a canção

Só tem razão se se cantar

Assim como uma nuvem

Só acontece se chover

Assim como o poeta

Só é grande se sofrer

Assim como viver

Sem ter amor não é viver

Não há você sem mim

Eu não existo sem você.


(Tom Jobim e Vinícius de Moraes)

22/10/2009

Memória


Memória

********

Amar o perdido

deixa confundido

este coração.

Nada pode o olvido

contra o sem sentido

apelo do Não.

As coisas tangíveis

tornam-se insensíveis

à palma da mão;

Mas as coisas findas

muito mais que lindas,

essas ficarão.


Carlos Drummond de Andrade

21/10/2009

Uma chance para viver (Living Proof, EUA, 2009, 90minutos)


Filme dirigido por Dan Ireland, produzido por Renée Zellwwegger e baseado na história real de Dennis Slamon e no livro "Her-2"! Harry Connick Jr. estrela no papel do Dr. Dennis Slamon, que trabalha em um pequeno laboratório da UCLA (Universidade da California, Los Angeles), num momento especial em sua carreira. Ele ajudou a desenvolver uma droga experimental chamada Herceptin®, um possível tratamento revolucionário na luta contra o câncer de mama, mas encontra dificuldade no financiamento para seu projeto na empresa Genentech ,que teme prejuízos; então surgem os filantropos Lilly Tartikoff e Ron Perelman, que ajudam o trabalho mais importante da vida do médico a tornar-se realidade.
Censura livre.

Minha nota: ****

LÁGRIMAS OCULTAS


Se me ponho a cismar em outras eras

Em que ri e cantei, em que era querida,

Parece-me que foi noutras esferas,

Parece-me que foi numa outra vida...

.

E a minha triste boca dolorida,

Que dantes tinha o rir das primaveras,

Esbate as linhas graves e severas

E cai num abandono de esquecida!

.


E fico, pensativa, olhando o vago...

Toma a brandura plácida dum lago

O meu rosto de monja de marfim...

.


E as lágrimas que choro, branca e calma,

Ninguém as vê brotar dentro da alma!

Ninguém as vê cair dentro de mim!

...


Florbela Espanca

20/10/2009

Definitivo


Definitivo, como tudo o que é simples.

Nossa dor não advém das coisas vividas,

mas das coisas que foram sonhadas

e não se cumpriram.

Por que sofremos tanto por amor?

O certo seria a gente não sofrer,

apenas agradecer por termos conhecido

uma pessoa tão bacana,

que gerou em nós um sentimento intenso

e que nos fez companhia por um tempo razoável,
um tempo feliz.

Sofremos por quê?

Porque automaticamente esquecemos

o que foi desfrutado e passamos a sofrer

pelas nossas projeções irrealizadas,

por todas as cidades que gostaríamos

de ter conhecido ao lado do nosso amor

e não conhecemos,

por todos os filhos que

gostaríamos de ter tido junto e não tivemos,

por todos os shows e livros e silêncios

que gostaríamos de ter compartilhado

e não compartilhamos.

Por todos os beijos cancelados

pela eternidade.



Carlos Drummond de Andrade

19/10/2009

Soneto

(Unforgetable... Inesquecível)
***
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.


Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.


O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.


E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

.
Luís de Camões

18/10/2009

" LÍRICA Nº 2" ( Afinal tu vieste )





"Afinal


tu vieste justificar minha presença


na vida.


E agora que te foste,


deixas, inexplicável,


minha vida, sem morte."


.
J. G. de Araújo Jorge ("ESPERA..."- 1960 )

Foto: Liz Guides

17/10/2009

SONHANDO...


SONHANDO...



É noite pura e linda. Abro a minha janela

E olho suspirando o infinito céu,
Fico a sonhar de leve em muita coisa bela.
Fico a pensar em ti e neste amor que é teu!
.

D'olhos fechados sonho. A noite é uma elegia
Cantando brandamente um sonho todo d'alma.
E enquanto a lua branca o linho bom desfia
Eu sinto almas passar na noite linda e calma.
.

Lá vem a tua agora... Numa carreira louca
Tão perto que passou, tão perto à minha boca
Nessa carreira doida, estranha e caprichosa
.

Que a minh'alma cativa estremece, esvoaça
Para seguir a tua, como a folha de rosa
Segue a brisa que a beija... e a tua alma passa!...
.
Florbela Espanca

.............................

16/10/2009

A MORTE

(Igreja Matriz de Extrema/MG - 16/10/1976)


" E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem no céu
de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
[...] A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaros(o)a, de mãos pensas."
.
Carlos Drummond de Andrade




A morte
é como o amor:
a coisa mais comum, mais repetida.

A morte
é como a dor,
é como a Vida

Sempre que chega é "nova",
imprevista, estranha,
desconhecida,


e entretanto está sempre conosco
e sempre nos acompanha,
desde o primeiro hausto
de vida.

Apesar de ser a coisa mais comum,
(prosaica, heróica, trágica, banal
ou bela)
nunca nos acostumamos a ela!
.
J. G. de Araújo Jorge,

do livro" Cantiga do Só ", 2ª edição, 1968.

14/10/2009

Alma minha gentil, que te partiste



Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,


Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
.

Luís de Camões
.

13/10/2009

Substituição



Se uma adorada voz, que fora em vossa vida,

suavidade e som, de repente se esvai,

e se logo um silêncio impenetrável cai,

qual súbito mal-estar ou dor desconhecida,


- que esperança há? Que auxílio? E que música ouvida,

o silêncio destrói? Nem da amizade o ai

– nem da razão sutil a conta; não se vai

ao som de violino ou de flauta gemida;



nem canções de poeta e nem de rouxinóis,

a voz que vai subindo através dos ciprestes

até à clara lua; e medo lhe não causa




das esferas, o canto – ou dos anjos, nos sóis,

a voz que sobe a Deus; ó não, nenhuma destas!

Fala só Tu, ó Cristo, e preenche esta pausa.

.
Elizabeth Barrett Browning

(Tradução de Alexandre Herculano de Carvalho)

12/10/2009

P.S. Eu Te Amo (P.S., I Love You, 2007)



Holly Kennedy (Hilary Swank) é uma jovem feliz, casada com Gerry (Gerard Butler), um irlandês divertido, por quem é completamente apaixonada. Porém, Gerry morre devido a uma doença e a vida de Holly também acaba, já que ela entra em profunda depressão. Mas o que ela não esperava era que, imaginando que isto poderia acontecer, Gerry deixou para ela diversas cartas antes de morrer, que aparecem de forma inusitada, cada uma delas buscando guiar Holly no caminho de sua recuperação, não apenas da dor pela sua perda mas também de sua própria redescoberta. Baseado no livro homônimo da escritora irlandesa Cecelia Ahern.




Minha nota: ****

Noite Antiquíssima


I
Noite Rainha nascida destronada,

Noite igual por dentro ao silêncio, Noite

Com as estrelas lantejoulas rápidas

No teu vestido franjado de Infinito.

Vem, vagamente,

Vem, levemente,

Vem sozinha, solene, com as mãos caídas

Ao teu lado, vem

E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,

Funde num campo teu todos os campos que vejo,

Faz da montanha um bloco só do teu corpo,

Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,

Todas as estradas que a sobem,

Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe,

Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,

E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,

Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,

Na distância subitamente impossível de percorrer.

Nossa Senhora

Das coisas impossíveis que procuramos em vão,

Dos sonhos que vêm ter conosco ao crepúsculo, à janela,

Dos propósitos que nos acariciam

Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas

Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,

E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...

Vem e embala-nos,

Vem e afaga-nos.

Beija-nos silenciosamente na fronte,

Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam

Senão por uma diferença na alma.

E um vago soluço partindo melodiosamente

Do antiquíssimo de nós

Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha

Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos

Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.

Vem soleníssima, Soleníssima e cheia

De uma oculta vontade de soluçar,

Talvez porque a alma é grande e a vida pequena,

E todos os gestos não saem do nosso corpo,

E só alcançamos onde o nosso braço chega,

E só vemos até onde chega o nosso olhar.

Vem, dolorosa,

Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,

Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados.

Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes.

Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.

Vem, lá do fundo

Do horizonte lívido,

Vem e arranca-me

Do solo de angústia e de inutilidade

Onde vicejo. Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,

Folha a folha lê em mim não sei que sina

E desfolha-me para teu agrado,

Para teu agrado silencioso e fresco.

Uma folha de mim lança para o Norte,

Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;

Outra folha de mim lança para o Sul,

Onde estão os mares que os Navegadores abriram;

Outra folha minha atira ao Ocidente,

Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,

Que eu sem conhecer adoro;

E a outra, as outras, o resto de mim

Atira ao Oriente,

Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,

Ao Oriente pomposo e fanático e quente,

Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,

Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,

Ao Oriente que tudo o que nós não temos,

Que tudo o que nós não somos,

Ao Oriente onde – quem sabe?

– Cristo talvez ainda hoje viva,

Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...

Vem sobre os mares,

Sobre os mares maiores,

Sobre os mares sem horizontes precisos,

Vem e passa a mão pelo dorso da fera,

E acalma-o misteriosamente,

Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!

Vem, cuidadosa,

Vem, maternal,

Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste

À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,

E que viste nascer Jeová e Júpiter,

E sorriste porque tudo te é falso e inútil.

Vem, Noite silenciosa e extática,

Vem envolver na noite manto branco

O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,

Tranquilamente com um gesto materno afagando.

Com as estrelas luzindo nas tuas mãos

E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.

Todos os sons soam de outra maneira

Quando tu vens.

Quando tu entras baixam todas as vozes,

Ninguém te vê entrar. Ninguém sabe quando entraste,

Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,

Que tudo perde as arestas e as cores,

E que no alto céu ainda claramente azul

Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,

A lua começa a ser real.



II
Ah, o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes nas grandes cidades

E a mão de mistério que abafa o bulício,

E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe

Para uma sensação exacta e precisa e activa da Vida!

Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios

E que misterioso o fundo unânime das ruas,

Das ruas ao cair da noite, ó Cesário e Verde, ó Mestre,

Ó do «Sentimento de um Ocidental»!

Que inquietação profunda, que desejo de outras coisas,

Que nem são países, nem momentos, nem vidas,

Que desejo talvez de outros modos de estados de alma

Umedece interiormente o instante lento e longínquo!

Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem,

Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas

Como um mendigo de sensações impossíveis

Que não sabe quem lhas possa dar...

Quando eu morrer,

Quando me for, ignobilmente, como toda a gente,

Por aquele caminho cuja ideia se não pode encarar de frente,

Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar, não assomaríamos,

Para aquele porto que o capitão do Navio não conhece,

Seja por esta hora condigna dos tédios que tive,

Por este hora mística e espiritual e antiquíssima,

Por esta hora em que talvez, há muito mais tempo do que parece,

Platão sonhando viu a ideia de Deus

Esculpir corpo e existência nitidamente plausível

Dentro do seu pensamento exteriorizado como um campo.

Seja por esta hora que me leveis a enterrar,

Por esta hora que eu não sei como viver,

Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho,

Por esta hora cuja misericórdia é torturada e excessiva,

Cujas sombras vêm de qualquer outra coisa que não as coisas,

Cuja passagem não roça vestes no chão da Vida Sensível

Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar.

Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira

que eu não tenho nem quero ter.

Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silêncio

A esta hora em que eu não posso ver que tu me olhas,

Olha-me em silêncio e em segredo e pergunto a ti própria

– Tu que me conheces – quem eu sou...

.

Álvaro de Campos (heteronômio de Fernando Pessoa)
A ortografia usada é a da época.

30/06/1914 (publicado na Revista de Portugal, nº 4, Julho de 1938)

11/10/2009

O MEU CONDÃO


O MEU CONDÃO

.

Quis Deus dar-me o condão de ser sensível

Como o diamante à luz que o alumia,

Dar-me uma alma fantástica, impossível:

- Um bailado de cor e fantasia!

.

Quis Deus fazer de ti a ambrosia

Desta paixão estranha, ardente, incrível!

Erguer em mim o facho inextinguível!
Como um cinzel vincando uma agonia!

.

Quis Deus fazer-me tua... para nada!

Vãos, os meus braços de crucificada,

Inúteis, esses beijos que te dei!

.

Anda! Caminha! Aonde?... Mas por onde?...

Se a um gesto dos teus a sombra esconde

O caminho de estrelas que tracei...

***

Florbela Espanca

10/10/2009

SE TU VIESSES VER-ME...


Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,

A essa hora dos mágicos cansaços,

Quando a noite de manso se avizinha,

E me prendesses toda nos teus braços...

.

Quando me lembra: esse sabor que tinha

A tua boca...o eco dos teus passos...

O teu riso de fonte...os teus abraços...

Os teus beijos...a tua mão na minha...

.

Se tu viesses quando, linda e louca,

Traça as linhas dulcíssimas dum beijo

E é de seda vermelha e canta e ri

.

E é como um cravo ao sol a minha boca...

Quando os olhos se me cerram de desejo...

E os meus braços se estendem para ti...

*

Florbela Espanca

09/10/2009

Como é por dentro outra pessoa


Como é por dentro outra pessoa

Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma

Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.

****
Fernando Pessoa, 1934
in: Poesias Inéditas

08/10/2009

Chá com Mussolini / As penas do Amor / Bolo Inglês

O diretor franco Zefirelli conta a história de Luca Innocenti , um garoto nascido bastardo e não-reconhecido oficialmente por seu pai, e que luta por sua independência e para achar um meio onde possa desenvolver seu apreço pela arte. Os anos seguintes (1935 a 1944) são uma evocação de um mundo desaparecido: o da quieta e bela cidade de Florença, à beira da Segunda Guerra Mundial, onde ele é criado por senhoras inglesas(conhecidas como as "scorpioni"): Arabella (Judi Dench), Mary (Joan Plowright) e a viúva de um diplomata, Hester (Maggie Smith), que retratam o excêntrico, colorido e legado das senhoras britânicas e que, juntamente com uma colecionadora de arte americana (Cher) e uma arqueologista (Lily Tomlin), dividem seu tempo em debates sobre a situação do país em plena Era Mussolini.
Site Oficial:
www.mgm.com/teawithmussolini



As penas do amor


Sobre os telhados a algazarra dos pardais,
Redonda e cheia a lua - e céu de mil estrelas,
E as folhas sempre a murmurar seus recitais,
Haviam esquecido o mundo e suas mazelas.
Então chegaram teus soturnos lábios rosas,
E junto a eles todas lágrimas da terra,
E o drama dos navios em águas tempestuosas
E o drama dos milhares de anos que ela encerra.
E agora, no telhado a guerra dos pardais,
A lua pálida, e no céu brancas estrelas,
De inquietas folhas, cantilenas sempre iguais,
Estão tremendo - sob o mundo e suas mazelas."
(Título Original: "The sorrow of Love")
Autor: William Butler Yeats
Tradutor: André C S Masini
*******





BOLO INGLÊS
Ingredientes:
• 180 g de manteiga derretida resfriada
• 180 g de açúcar
• 180 g de farinha peneirada
• 3 ovos
• 1 colher (café) de fermento químico
Prepare assim:
• Unte uma forma de bolo inglês com manteiga e deixe o forno pré-aquecido a 200ºC;
• Pese os ovos e pese exatamente o mesmo peso em açúcar, manteiga e farinha;
• Misture a manteiga e o açúcar juntos e bata com o batedor até obter um creme (na falta de balança, utilize as medidas dadas acima);
• Acrescente a essência de baunilha;
• Deixe reduzir, corrija o sal se necessário;
• Separe os ovos e incorpore as gemas, uma a uma, no creme de manteiga;• Misture o fermento e a farinha neste mesmo creme;
• Separadamente, bata as claras em neve de maneira que fiquem bem firmes e incorpore à massa;
• Derrame essa massa na forma e asse por 35 minutos;
• Desenforme e deixe esfriar numa grelha.



07/10/2009

O Sofrimento


"O enigma do sofrimento tem a idade do próprio sofrimento. Dizer isso é enunciar um axioma. O primeiro homem a sentir o aguilhão da dor foi, sem dúvida,o primeiro a lançar para o infinito o brado de angústia:
- Por quê?
E daí para nosso dias esse 'por quê' doloroso e desconcertante vem-se avolumando mais e mais, a cada geração que passa, a cada calamidade que aflija os homens."

*Autor desconhecido

06/10/2009

Reine Sobre Mim (Reign Over Me- 2007)


Após perder a esposa e três filhas no atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, Charlie Fineman (Adam Sandler)foge de seus sentimentos e dor; mas reencontra um antigo colega de quarto dos tempos da faculdade de odontologia, Alan Johnson (Don Cheadle), profissional de sucesso, casado com Janeane Johnson (Jada Pinkettt Smith) e pai de duas filhas, e que se sente sobrecarregado pela vida. Alan, com a ajuda de uma psiquiatra, a dra. Angela (Liv Tyler), vai ajudar o amigo a falar do passado e descobrir um novo caminho.
"Reine Sobre Mim" foi escrito e dirigido por Mike Binder. O título é uma referência à canção de Pete Townshen para a banda The Who, "Love, Riegn O'er Me".

Minha nota: ****

Carta para o Amor ausente

Nesta manhã nevoenta de fumaça
estou morrendo de saudades tuas;
há na minha alma convulsão de luas,
há no meu peito a angústia que amordaça.
.
Amor, estou sorvendo a amarga taça,
a taça amarga das verdades cruas;
e busco em vão no retinir das ruas,
sufocar este amor que me desgraça.
.
Inútil!... E a obsessão dos teus abraços?!
Sinto em mim ainda as mãos do teu carinho,
dedilharem as cordas dos meus braços,
.
e tua ausência, e o teu silêncio enorme,
vivem cantando para mim baixinho,
ninando esta saudade que não dorme!
.
Eny Santos Júdice (1930)

05/10/2009

Chove.



Chove. Que fiz eu da vida?

Fiz o que ela fez de mim...

De pensada, mal vivida...

Triste de quem é assim!

.
Numa angústia sem remédio

Tenho febre na alma, e, ao ser,

Tenho saudade, entre o tédio,

Só do que nunca quis ter...

.
Quem eu pudera ter sido,

Que é dele? Entre ódios pequenos

De mim, 'stou de mim partido.

Se ao menos chovesse menos!

:::
Fernando Pessoa, 23-10-1931

in: Poesias Inéditas

04/10/2009

Desiderata (Serenidade)

"Transite com calma entre a bulha e a pressa, e não se recuse à paz do silêncio. Sem sacrificar os seus princípios, seja cordial com todos. Mostre sereno e calmo a sua verdade; e escute a dos outros, mesmo a dos pobres de espírito: eles também tem o que dizer. Comparando-se com os outros, evite as mágoas e a vaidade, porque sempre haverá gente abaixo e acima de você .
Goze as suas vitórias como os seus projetos. Não despreze a sua carreira, por mais humilde que seja; ela será um bem nas incertezas do amanhã. Proceda com cautela nos contratos do comércio, pois o mundo está cheio de raposas. Mas que a cautela não o cegue para a virtude: existe idealismo também, e não falta heroísmo ao mundo.
Seja fiel a si mesmo. Acima de tudo, nunca finja afeição. Jamais seja cínico em amor, pois mesmo com o risco de aridez e desencanto, ele é perene como a grama. Aceite de bom grado as poderações da idade, não se apegue aos bens da juventude. Exercite a fortaleza de ânimo para se garantir nos desastres súbitos. Mas não se deixe transportar pela imaginação.
Muitos receios nascem do cansaço e da solidão. Adote uma disciplina saudável, mas não se esgote por ela. Você é filho do universo, como as árvores e as estrelas, e tem o direito de estar aqui. E quer você entenda quer não, o universo se expande como deve. E esteja, pois, em paz com Deus, com o seu Deus, e sejam quais forem as suas lutas e ideais, viva em paz.
Malgrado as imposturas, as durezas e as decepções, o mundo ainda é belo. Tenha cuidado. Procure ser feliz."

Max Ehrmann, poeta e teatrólogo americano(1872-1945). Tradução do Padre Antonio Maria Cabral.

O meu impossível

O meu impossível
********
Minh'alma ardente é uma fogueira acesa,
É um brasido enorme a crepitar!
Ânsia de procurar sem encontrar
A chama onde queimar uma incerteza!
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Tudo é vago e incompleto! E o que mais pesa
É nada ser perfeito. É deslumbrar
A noite tormentosa até cegar,
E tudo ser em vão! Deus, que tristeza!...
.
Aos meus irmãos na dor já disse tudo
E não me compreenderam!... Vão e mudo
Foi tudo o que entendi e o que pressinto...
.
Mas se eu pudesse a mágoa que em mim chora
Contar, não a chorava como agora,
Irmãos, não a sentia como a sinto!...
*********
Florbela Espanca

03/10/2009

Com licença poética


Com licença poética
.
Quando nasci um anjo esbelto,

desses que tocam trombeta, anunciou:

vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada.

Aceito os subterfúgios que me cabem,

sem precisar mentir.

Não sou feia que não possa casar,

acho o Rio de Janeiro uma beleza e

ora sim, ora não, creio em parto sem dor.

Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

Inauguro linhagens, fundo reinos

— dor não é amargura.

Minha tristeza não tem pedigree,

já a minha vontade de alegria,

sua raiz vai ao meu mil avô.

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

***

Adelia Prado

02/10/2009

Saudade




Saudade é solidão acompanhada,

é quando o amor ainda não foi embora, mas o amado já...

Saudade é amar um passado que ainda não passou,

é recusar um presente que nos machuca,

é não ver o futuro que nos convida...

Saudade é sentir que existe o que não existe mais...

Saudade é o inferno dos que perderam,

é a dor dos que ficaram para trás,

é o gosto de morte na boca dos que continuam...

Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:

aquela que nunca amou.

E esse é o maior dos sofrimentos:

não ter por quem sentir saudades, passar pela vida e não viver.

O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.



Pablo Neruda

01/10/2009

A nossa casa


A NOSSA CASA
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A nossa casa, Amor, a nossa casa!
Onde está ela, Amor, que não a vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Constrói-a, num instante, o meu desejo!
.
Onde está ela, Amor, a nossa casa,
O bem que neste mundo mais invejo?
O brando ninho aonde o nosso beijo
Será mais puro e doce que uma asa?
.
Sonho... que eu e tu, dois pobrezinhos,
Andamos de mãos dadas, nos caminhos
Duma terra de rosas, num jardim,
.
Num país de ilusão que nunca vi...
E que eu moro - tão bom! - dentro de ti
E tu, ó meu Amor, dentro de mim...
***
Florbela Espanca