16/10/2010

O lado fatal

I
Quando meu amado morreu, não pude acreditar:


andei pelo quarto sozinha repetindo baixo:


"Não acredito, não acredito."


Beijei sua boca ainda morna,


acarinhei seu cabelo crespo,


tirei sua pesada aliança de prata com meu nome


e botei no dedo.


Ficou larga demais, mas mesmo assim eu uso.


II

Muita gente veio e se foi.


Olharam, me abraçaram, choraram,


todos com ar de incrédula orfandade.


III
Aquele de quem hoje falam e escrevem


(ou aos poucos vão-se esquecendo)


é muito menos do que este, deitado em meu coração,


meu amante e meu menino ainda.


VI
Deus


(ou foi a Morte?)


golpeou com sua pesada foice


o coração do meu amado


(não se vê a ferida, mas rasgou o meu também).


Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado,


disse bem alto meu nome no quarto de hospital,


e partiu.


Quando se foram também os médicos e sua máquinas inúteis,


ficamos sós: a Morte (ou foi Deus?)


o meu amado e eu.


Enterrei o rosto na curva do seu ombro


como sempre fazia,


disse as palavras de amor que costumávamos trocar.


O silêncio dele era absoluto: seu coração emudecido


e o meu, varados por essa dourada foice.


Por onde vou deixo o rastro de um sangue denso e triste


que não estancará jamais.


VInsensato eu estar aqui, e viva.


O rosto dele me contempla


vincado e triste no retrato sobre minha mesa;


em outros, sorri para mim, apaixonado e feliz


Insensato, isso de sobreviver:


mas cá estou, na aparência inteira.


Vou à janela esperando que ele apareça


e me acene com aquele seu gesto largo e generoso,


que ao acordar esteja ao meu lado


e que ao telefone seja sempre a sua voz.


Sei e não sei que tudo isso é impossível,


que a morte é um abismo sem pontes


(ao menos por algum tempo).


Sobrevivo, mas pela insensatez.


VII
Pensei que estávamos apenas no começo:


a casa mal-e-mal nos alicerces.


Mas provavelmente estava concluída


e eu não sabia.


Tínhamos erguido em nossos poucos anos


as paredes necessárias;


o telhado se inclinava ao jeito certo,


e havia vidraças nas janelas.


(Éramos felizes ali dentro


mesmo com as tempestades de fora.)


Tudo se construiu num lapso tão curto:


até a porta de entrada, por onde ele saiu


casualmente como quem vai comprar jornal.A porta está apenas encostada


embora pareça alta, dura, intransponível:


do lado de lá, o meu amor vê as maravilhas


que tanto nos intrigavam nesta vida.


VII
Tanto escrevi sobre a morte


em livros e poemas nesses anos:


sempre achei que a entendia um pouco.


Mas agora que ela me dilacerou a vida,


me rasgou o peito,


me levou o amado,


sinto que mal começo a compreender


sua mensagem:


tirando-o de mim, a morte o devolve


para que seja mais meu.


Dentro de mim um quebra-cabeças, e nele


[o meu amado.


Nem Deus o tirará daqui.


VIII
O meu amado morreu:


viver sem ele, como dói.


Não tivemos filhos juntos,


nosso passado foi tão breve que era sempre


[presente.


Um dia ele mandou fazer um par de alianças


de pesada prata, parecendo antigas;


gravou apenas nossos nomes, sem data, e disse:


"Somos um só desde sempre."


Ainda não acreditei em sua morte,


e talvez isso me salve por enquanto.


Levantar-me da cama cada dia é um ato heróico,


acender o cigarro, atender o telefone, tomar café.


Mas faço tudo isso:


falo, ando, recebo visitas.


Compro móveis para a casa onde moro sem ele,


imaginando: será que ele vai gostar?


De algum secreto lugar me vem a força


para erguer a xícara, acender o cigarro,


até sorrir quando alguém me diz:


"Você hoje está com a cara ótima",


quando penso se não doeria menos


jogar-me de um décimo-primeiro andar.


XIX
Amado meu, agora morto,


postado do lado de lá da fronteira que nos seduzia,


mudo e quedo como se não existisses:


eu sei que existes,


intensamente, ardentemente existes,


feito e desfeito no fogo de um amor maior que


[o nosso


mas que nos abrange.


Amado meu, morto agora e para sempre vivo,


hás de ter ainda o intenso olhar que me entendia,


as curvas amorosas da boca que chamou meu nome,


as belas, inquietas mãos que ardiam nas minhas.


ajuda-me agora, silencioso que estás,


a suportar a sobrevida


e a decifrar esse alto, intransponível muro que me


[cerca.


X
Nunca tivemos filhos juntos, e ele reclamava:


"Nosso amor merecia um filho ao menos.


"Nosso filho é a minha dor de hoje,


é a fulguração que nos deixava tontos,


é o novelo da memória que teço e reteço


nas minhas insônias.


Nosso filho é o meu tempo de agora


para falar do meu amado:


da sua força e sua fragilidade,


da sua indignação e seus prantos,


da sua necessidade de ser amado e aceito


como finalmente deve estar sendo, por inteiro,


na realização de todos os seus vastos desejos.


XI
O meu amor enveredou por sua morte


como quem vai a um encontro de amor:


impaciente.


Deixou-me este coração golpeado,


esta derrota.


Mas também ficou a claridade desses anos


e a sensação de que ele finalmente


vive o encontro de amor


que toda a devoção de minha vida não lhe poderia


[dar.(Um dia, celebraremos juntos.)


Lya Luft
(continua...)

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