30/06/2010

Formas



Formas



De um único modo se pode dizer a alguém:

'não esqueço você'.

A corda do violoncelo fica vibrando sozinha

sob um arco invisível

e os pecados desaparecem como ratos flagrados.

Meu coração causa pasmo porque bate

e tem sangue nele e vai parar um dia

e vira um tambor patético

se falas no meu ouvido:

'não esqueço você'.

Manchas de luz na parede,

uma jarra pequena

com três rosas de plástico.

Tudo no mundo é perfeito,

e a morte é amor.



Adélia Prado

29/06/2010

" Sonhos de Amor ..."




Sonhos, sonhos de amor... Enganosa miragem
do deserto. . . fulgor de insidiosa lagoa
a sorrir e a tremer sob a fresca ramagem,
na aparência feliz da água límpida e boa...

Castelo de fumaça a embalar-se na aragem
e que de brusco rola e no azul se esboroa . . .
Rútila espumarada oceânica . . . paisagem
que vista ao longe encanta e que de perto enjoa.

Borboletas ao sol... íngreme e dura serra,
que na luz do horizonte afunda as amplas cristas,
lembrando uma região de paz dentro da terra . . .
 Paisagem, borboleta, águas, espumaradas!

Ilusório clarão das cousas entrevistas!
Passageiro esplendor.

(Amadeu Amaral Ataliba Arruda Leite Penteado)

28/06/2010

Companhia



Afinal tenho estes versos
com quem posso conversar e falar de ti,
sem que ninguém perceba,

sem precisar partilhar-te.

Afinal, tenho a poesia, para confessar-me,
e para te encontrar nas horas
em que a solidão

me amedronta.

 

J. G. de Araújo Jorge,
do livro"A Sós..." 1a ed. - 1958

27/06/2010

O voo


Goza a euforia do voo do anjo perdido em ti.

Não indagues se nossas estradas, tempo e vento, desabam no abismo.

Que sabes tu do fim?

Se temes que teu mistério seja uma noite, enche-o de estrelas.

Conserva a ilusão de que teu voo te leva sempre para o mais alto.
No deslumbramento da ascensão,
se pressentires que amanhã estarás mudo,
esgota, como um pássaro, as canções que tens na garganta.
Canta!
Canta para conservar uma ilusão de festa e de vitória.
Talvez as canções adormeçam as feras que esperam devorar o pássaro.
Desde que nasceste não és mais que um voo tempo.
Rumo do céu?
Que importa a rota.

Voa e canta, enquanto resistirem as asas.

Menotti Del Picchia
(1892-1988)

26/06/2010

Amai-vos

Amai-vos um ao outro,
mas não façais do amor um grilhão.

Que haja, antes, um mar ondulante
entre as praias de vossa alma.

Enchei a taça um do outro,
mas não bebais da mesma taça.

Dai do vosso pão um ao outro,
mas não comais do mesmo pedaço.

Cantai e dançai juntos,
e sede alegres,

mas deixai
cada um de vós estar sozinho.

Assim como as cordas da lira
são separadas e,

no entanto,
vibram na mesma harmonia.

Dai vosso coração,
mas não o confieis à guarda um do outro.

Pois somente a mão da Vida
pode conter vosso coração.

E vivei juntos,
mas não vos aconchegueis demasiadamente.

Pois as colunas do templo
erguem-se separadamente.

E o carvalho e o cipreste
não crescem à sombra um do outro.

Gibran Kahlil Gibran

Mergulho


Almejo mergulhar
na solidão e no silêncio,
para encontrar-me
e despojar-me de mim,
até que a Eterna Presença
seja a minha plenitude.
 
Helena Kolody 

25/06/2010

Desilusão



E que é amar? A estranha dor
de estilhaçar a alma em carinho...
É colher ao acaso alguma flor
para despetalá-la no caminho.
 
E que resta depois de tantos ais?

 
A saudade? Talvez...Ó alma enganada,
de ti e da flor não resta quase nada:
um punhado de pétalas na estrada,
um perfume nos dedos... - Nada mais.

 
Menotti del Picchia
(1892-1988)

24/06/2010

Rosto com dois perfis




Já não procuro a palavra exata
que me pudesse explicar:

ando pelos contornos

onde todos os significados

são sutis, são mortais.

Não busco prender o momento

belo: quero vivê-lo sempre mais

com a intensidade que exige a vida,
com o desgarramento do salto

e da fulguração.

E me corto ao meio e me solto

de mim, duplo coração:

a que vive, a que narra,

a que se debate e a que voa

- na loucura que redime

da lucidez.
***
Lya Luft

23/06/2010

Ausência

Ausência


Num deserto sem água

Numa noite sem lua

Num país sem nome

Ou numa terra nua


Por maior que seja o desespero

Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.


*

Sophia de Mello Breyner



(1919-2004)

22/06/2010

Às vezes...

 



Às vezes tenho idéias felizes,

Idéias subitamente felizes, em idéias

E nas palavras em que naturalmente se despegam...



Depois de escrever, leio...

Por que escrevi isto?

Onde fui buscar isto?

De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...

Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta

Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?


Álvaro de Campos, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa

(1888-1935)

21/06/2010

Soneto VIII


Se não fosse porque têm cor-de-lua teus olhos,
de dia com argila, com trabalho, com fogo,
e aprisionada tens a agilidade do ar,
se não fosse porque uma semana és de âmbar,

se não fosse porque és momento amarelo
em que o outono sobe pelas trepadeiras
e és ainda o pão que a lua fragrante
elabora passeando sua farinha pelo céu,

oh, bem-amada, eu não te amaria!
Em teu braço eu abraço o que existe,
a areia, o tempo, a árvore da chuva,

e tudo vive para que eu viva:
sem ir tão longe posso ver tudo:
vejo em tua vida todo o vivente.

Pablo Neruda

20/06/2010

Coisa tua


Coisa tua


assim que vi você
logo vi que ia dar coisa
coisa feita pra durar,
batendo duro no peito
até eu acabar virando
alguma coisa
parecida com você
parecia ter saído
de alguma lembrança antiga
que eu nunca tinha vivido,
mas ia viver um dia
alguma coisa perdida
que eu nunca tinha tido
alguma voz amiga
esquecida no meu ouvido
agora não tem mais jeito,
carrego você no peito

poema na camiseta
com a tua assinatura
já nem sei se é você mesmo
ou se sou eu que virei alguma coisa tua.

De tanto não poder dizer
meus olhos deram de falar
só falta você ouvir.

Alice Ruiz

19/06/2010

Tão sutilmente

Tão sutilmente em tantos breves anos
foram se trocando sobre os muros
mais que desigualdades, semelhanças,
que aos poucos dois são um, sem que no entanto
deixem de ser plurais:
talvez as asas de um só anjo, inseparáveis.
Presenças, solidões que vão tecendo a vida,
o filho que se faz, uma árvore plantada,
o tempo gotejando do telhado.
Beleza perseguida a cada hora, para que não baixe
o pó de um cotidiano desencanto.


Tão fielmente adaptam-se as almas destes corpos
que uma em outra pode se trocar,
sem que alguém de fora o percebesse nunca.


Lya Luft

17/06/2010

Soneto V


"NÃO TE TOQUE a noite nem o ar nem a aurora,
só a terra, a virtude dos cachos,
as maçãs que crescem ouvindo a água pura,
o barro e as resinas de teu país fragrante.
 
Desde Quinchamalí onde fizeram teus olhos
aos teus pés criados para mim na Fronteira
és a greda escura que conheço:
em teus quadris toco de novo todo o trigo.
 
Talvez tu não saibas, araucana,
que quando antes de amar-te me esqueci de teus beijos
meu coração ficou recordando tua boca
 
e fui como um ferido pelas ruas
até que compreendi que havia encontrado
amor, meu território de beijos e vulcões."

(Pablo Neruda)

16/06/2010

DAME LA MANO


DAME LA MANO


Dame la mano y danzaremos;

dame la mano y me amarás.

Como una sola flor seremos,

como una flor, y nada más...
 


El mismo verso cantaremos,

al mismo paso bailarás.

Como una espiga ondularemos,

como una espiga, y nada más.


Te llamas Rosa y yo Esperanza;

pero tu nombre olvidarás,

porque seremos una danza

en la colina, y nada más...
 
GabrielaMistral

15/06/2010

# Soneto XVIII #

# Soneto XVIII #



Devo igualar-te a um dia de verão?

Mais afável e belo é o teu semblante:

O vento esfolha Maio inda em botão,

Dura o termo estival um breve instante.



Muitas vezes a luz do céu calcina,

Mas o áureo tom também perde a clareza:

De seu belo a beleza enfim declina,

Ao léu ou pelas leis da Natureza.



Só teu verão eterno não se acaba

Nem a posse de tua formosura;

De impor-te a sombra a Morte não se gaba



Pois que esta estrofe eterna ao Tempo dura.

Enquanto houver viventes nesta lida,

Há-de viver meu verso e te dar vida.



*William Shakespeare*

14/06/2010

O meu coração

O meu coração







O meu coração quebrou-se



Como um bocado de vidro



Quis viver e enganou-se...







Fernando Pessoa (1888-1935)
in: Poesias Inéditas

13/06/2010

Improviso do Amor-Perfeito

Improviso do Amor-Perfeito



Naquela nuvem, naquela,

mando-te o meu pensamento:

que Deus se ocupe do vento.



Os sonhos foram sonhados,

e o padecimento aceito.

E onde estás, Amor-Perfeito?



Imensos jardins da insônia,

de um olhar de despedida,

deram flor por toda a vida.



Ai de mim, que sobrevivo

sem o coração no peito.

E onde estás, Amor-Perfeito?
*

Cecília Meireles

(1901-1964)

12/06/2010

Houve um poema


 

Houve um poema,

entre a alma e o universo.

Não há mais.

Bebeu-o a noite, com seus lábios silenciosos.

Com seus olhos estrelados de muitos sonhos.


Houve um poema:

Parecia perfeito.

Cada palavra em seu lugar,

como as pétalas nas flores

e as tintas no arco-íris.

No centro, mensagem doce

E intransmitida jamais.


Houve um poema:

e era em mim que surgia, vagaroso.

Já não me lembro, e ainda me lembro.

As névoas da madrugada envolvem sua memória.

É uma tênue cinza.

O coral do horizonte é um rastro de sua cor.

Derradeiro passo.


Houve um poema.

Há esta saudade.

Esta lágrima e este orvalho - simultâneos -

que caem dos olhos e do céu.


Cecília Meireles

11/06/2010

Viagem

Viagem


No perfume dos meus dedos,

há um gosto de sofrimento,

como o sangue dos segredos

no gume do pensamento.

Por onde é que vou?
 


Fechei as portas sozinha.

Custaram tanto a rodar!

Se chamasse, ninguém vinha.

Para que se há de chamar?

Que caminho estranho!
Eras coisa tão sem forma,




tão sem tempo, tão sem nada...

- arco-íris do meu dilúvio! -

que nem podias ser vista

nem quase mesmo pensada.

Ninguém mais caminha?

A noite bebeu-te as cores

para pintar as estrelas.

Desde então, que é dos meus olhos?

Voaram de mim para as nuvens,
com redes para prendê-las.

Quem te alcançará?

Dentro da noite mais densa,

navegarei sem rumores,

seguindo por onde fores

como um sonho que se pensa.

Para onde é que vou?

Cecília Meireles(1901-1964)

10/06/2010

Soneto de Separação


"Soneto de Separação"



De repente do riso fez-se o pranto

Silencioso e branco como a bruma

E das bocas unidas fez-se a espuma

E das mãos espalmadas fez-se o espanto

De repente da calma fez-se o vento

Que dos olhos desfez a última chama

E da paixão fez-se o pressentimento

E do momento imóvel fez-se o drama

De repente não mais que de repente

Fez-se de triste o que se fez amante

E de sozinho o que se fez contente

Fez-se do amigo próximo, distante

Fez-se da vida uma aventura errante

De repente, não mais que de repente.
*
Vinicius de Moraes

08/06/2010

Não digam que isso passa





Não digam que isso passa,

não digam que a vida continua,

e que o tempo ajuda,

que afinal tenho filhos e amigos

e um trabalho a fazer.

Não me consolem dizendo que ele morreu cedo

Mas morreu bem ( que não quereria uma morte como essa?)

Não me digam que tenho livros a escrever

e viagens a realizar.

Não digam nada.

Vejo bem que o sol continua nascendo

nesta cidade de Porto Alegre

onde vim lamber minha ferida escancarada.

Mas não me consolem:

da minha dor, sei eu.





Lya Luft

07/06/2010

Se recordo

Se recordo


 
Se recordo quem fui, outrem me vejo,
E o passado é o presente na lembrança.
Quem fui é alguém que amo
Porém somente em sonho.
E a saudade que me aflige a mente
Não é de mim nem do passado visto,
Senão de quem habito
Por trás dos olhos cegos.
Nada, senão o instante, me conhece,
Minha mesma lembrança é nada, e sinto
Que quem sou e quem fui
São sonhos diferentes.


Ricardo Reis
(heterônimo de Fernando Pessoa)

06/06/2010

A Serenata


A serenata







Uma noite de lua pálida e gerânios

ele viria com boca e mão incríveis

tocar flauta no jardim.

Estou no começo do meu desespero

e só vejo dois caminhos:

ou viro doida ou santa.

Eu que rejeito e exprobo

o que não for natural como sangue e veias

descubro que estou chorando todo dia,

os cabelos entristecidos,

a pele assaltada de indecisão.

Quando ele vier, porque é certo que ele vem,

de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?

A lua, os gerânios e ele serão os mesmos

- só a mulher entre as coisas envelhece.

De que modo vou abrir a janela, se não for doida?

Como a fecharei, se não for santa?





Adélia Prado

05/06/2010

Versos

Versos! Versos! Sei lá o que são versos...

Pedaços de sorriso, branca espuma,

Gargalhadas de luz, cantos dispersos,

Ou pétalas que caem uma a uma...



Versos...Sei lá! Um verso é teu olhar,

Um verso é teu sorriso e os de Dante

Eram o seu amor a soluçar

Aos pés da sua estremecida amante!

Meus versos!... Sei eu lá também que são...

Sei lá! Sei lá!... Meu pobre coração

Partido em mil pedaços são talvez...



Versos! Versos! Sei lá o que são versos...

Meus soluços de dor que andam dispersos

Por este grande amor em que não crês!...



Florbela Espanca

(1894-1930)

04/06/2010

Depois de tudo

Depois de tudo



Mas tudo passou tão depressa

Não consigo dormir agora.

Nunca o silêncio gritou tanto

Nas ruas da minha memória.

Como agarrar líquido o tempo

Que pelos vãos dos dedos flui?

Meu coração é hoje um pássaro

Pousado na árvore que eu fui.



Cassiano Ricardo

(1895-1974)