31/12/2009

Receita de Ano Novo

Receita de ano novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação
com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo,
remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia, se ama,
se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha
ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens? passa telegramas?)
Não precisa fazer lista de boas intenções

para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar que
por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados,
começando pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo

que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo,
eu sei que não é fácil, mas tente,
experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade

30/12/2009

Dúvida (Doubt, 2008, USA, 16 anos)


O carismático padre Brendan Flynn (Philip Seymour Hoffman) tenta acabar com os rígidos costumes da escola St. Nicholas, localizada no Bronx, em plenos anos 60, mas a diretora do local é a irmã Aloysius Beauvier (Meryl Streep), que acredita no poder do medo e da disciplina, dirigindo com mãos de ferro. A escola aceitou recentemente seu primeiro aluno negro, Donald Miller (Joseph Foster), devido às mudanças políticas da época. A irmã James (Amy Adams) conta à diretora suas suspeitas sobre o padre Flynn, de que esteja dando atenção demais a Donald, o que é o suficiente para que a irmã Aloysius inicie uma cruzada moral contra o padre, tentando a qualquer custo expulsá-lo da escola, apoiada apenas na sua certeza moral.
site oficial:http://www.doubt-themovie.com/
http://movieclock.com/aw/cvpa.aw/e/189145/Doubt.html
Minha nota: ****

25/12/2009

Natal


Jesus nasceu. Na abóbada infinita

Soam cânticos vivos de alegria;

E toda a vida universal palpita

Dentro daquela pobre estrebaria...


Não houve sedas, nem cetins, nem rendas

No berço humilde em que nasceu Jesus...

Mas os pobres trouxeram oferendas

Para quem tinha de morrer na cruz.


Sobre a palha, risonho, e iluminado

Pelo luar dos olhos de Maria,

Vede o Menino-Deus, que está cercado

Dos animais da pobre estrebaria.


Nasceu entre pompas reluzentes;

Na humildade e na paz deste lugar,

Assim que abriu os olhos inocentes

Foi para os pobres seu primeiro olhar.

No entanto, os reis da terra, pecadores,

Seguindo a estrela que ao presepe os guia,

Vem cobrir de perfumes e de flores

O chão daquela pobre estrebaria.

Sobem hinos de amor ao céu profundo;

Homens, Jesus nasceu! Natal! Natal!

Sobre esta palha está quem salva o mundo,

Quem ama os fracos, quem perdoa o mal,

Natal! Natal! Em toda a natureza

Há sorrisos e cantos, neste dia...

Salve Deus da humildade e da pobreza

Nascido numa pobre estrebaria.

>>>

Olavo Bilac

23/12/2009

Natal


Natal...Natal... meus tempos de menino,
Tempos felizes que não voltam mais...
Missa do galo... repicar do sino...
E a casa pobre dos meus velhos pais...
.
Natal... a mocidade... o desatino...
Amores loucos, ternos madrigais...
Mulheres que dobraram meu destino...
Beijos de lacre, quentes e fatais...
.
Papai Noel! Atende ao meu pedido
Nesta noite de paz e de bonança...
Atende... pelo muito que hei sofrido...
.
E em meus sapatos põe a caridade,
De um pedaço bonito de esperança,
De um farrapo esquecido de saudade...
*****
Ciro Vieira da Cunha

22/12/2009


"Este é meu dilema: Sou apenas pó e cinzas; frágil, tendente ao desvio, um conjunto de reações pré-determinadas em minha conduta, acossado por temores, cercado por necessidades, a quintessência da poeira, que ao pó voltará.


Mas há alguma outra coisa em mim. Posso ser pó, mas pó perturbado. Pó que sonha. Pó que passa por estranhas premonições de transfiguração, de glória reservada, de destino adredemente preparado, de uma herança que um dia será minha. Desse modo, minha vida é vivida na dolorosa dialética entre as cinzas e a glória, entre a fraqueza e a transfiguração. Sou um rebelde contra mim mesmo, um enigma exasperado, esse estranho dualismo de poeira e glória." Richard Holloway

21/12/2009

" Desolação "


"Desolação "


Na profunda tristeza deste instante,

em que o irremediável

abalou a minha sorte,

na certeza de que te ausentaste definitivamente,

- eu pensei pela primeira vez na morte ...

Tudo desapareceu aos meus olhos atônitos

e eu me senti sozinho...

- já não há finalidade na minha criação

nem desejo na minha vida...

Só não abro em meu peito o coração, e o ponho na lapela

como rubra papoula em flor,

- porque sei que ainda te encontras dentro dele,

e nem mesmo a tua lembrança eu ousaria ferir

oh! meu amor!


(Poema de J. G. de Araújo Jorge,

do livroEterno Motivo)
Foto: Liz Guides

20/12/2009

Apelos

Os apelos do íntimo e os apelos da rua
como matéria de poesia, nua e crua

Diálogo sem fim
e a esmo
entre mim
e mim mesmo.

Tudo o que vi e que vivi retomo
e ao que o destino me negou
eu somo.

Afonso Félix de Souza

10/12/2009

" A Noite... e Teus Olhos..."

Ah! parece que a noite vem se aleitar
de nebulosas e de astro
sem teus fugidios.
E que teus olhos se abastecem de luz
e mistério,
nas noites profundas e consteladas...
J. G. de Araujo Jorge
(do livro"A Sós..." 1a ed. 1958 )

09/12/2009

A voz pelo telefone

Voz amiga, que me acostumei a ouvir na noite, e que me falava do amor ainda possível na terra, das viagens para o desconhecido, das mãos unidas, dos olhos mergulhados nos olhos, das fugas, das solidões profundas.
Eu ouvia sempre a voz doce, velada, calma(que às vezes se entrecortava de um soluço e rasgava uma pausa dolorosa na conversa) e pensava que a vida não é afinal uma coisa absurda, porque dentro dela cabem palavras brandas, que acalantam as almas. E a voz continuava, murmúrio amigo, na longa noite mineira.
(Longe, homens matavam-se. Perto, outros homens atiravam-se palavras feias. O rádio funcionava. A vida funcionava. A voz perdia-se dentro da confusão, e era consoladora).
Tantas ruas reparando a nossa conversa. Bondes passando no meio, corpos se entrecruzando, homens tirando o chapéu. Os guardas. Funcionários e todas as repartições de todas as cidades. Detetives. Curiosos anônimos. Todos os homens que escutam atrás das portas, que veem através da porta. E a voz constante, alegre e tranquila, zombando de tudo, saltando de uma casa para outra e mantendo comigo o infinito, noturno diálogo.
Depois o silêncio.
Silêncio dentro e fora de nós, dissolvendo o mundo e suas criaturas sem sentido. Eu escutava esse silêncio casto. E dentro dele a voz ainda existia, mais tênue que um sopro, lembrança de voz, desenho, reflexo, sombra de voz, contando segredos. Que importa que os outros não ouçam? A voz é tênue, e os homens são surdos. Eu sozinho escutava, e tinha medo de que ela emigrasse para Passárgada, onde os ouvidos são sutilíssimos e as músicas mais especiosas andam no ar.
Mas nós estávamos em Minas Gerais, Brasil, país de caminhos fechados, país irremediável...
Carlos Drummond de Andrade

Sonetos do amante


Sonetos do amante

III

Tudo que tenho a dar quando te entregas
a mim – é muito pouco. Já não basta
que os gestos guardem tantas ânsias cegas
de amar, de ser. Pois a memória arrasta
o rio do passado, que não regas,
que não regaste, com a água da vasta
fonte com que me embriagas; e se negas
ser a que fica em mim quando se afasta
da carne e da poesia: hora em que tento
outros mundos criar no pensamento,
contigo, além do tempo e da distância.
Não basta dar-te o canto como preço
do corpo junto ao meu, se ainda não desço
ao abismo onde o amor devolve a infância.

VI
Pudesse oferecer-te o que não tenho
numa palavra há muito tempo presa
nas grades do silêncio. E, donde venho
buscar-te com a minha natureza
de deus e de animal, trouxesse o lenho
que avivaria a sede sempre acesa
de aplacar tantas sedes que retenho
de ser mais do que sou, dar-te a beleza
do efêmero perdido, do que tive
de infância e de ternura, do que vive
em mim de quem mais quer e que te quer
- talvez sentisses mais que a carne pobre
que me eleva e revela, mas me cobre,
e sentisse eu em ti mais que a mulher.

VIII
Eternizar o amor que fora eterno
embora só vivesse dois instantes:
um quando ao céu me alçou – a um céu sem antes;
depois, ao acender em mim o inferno.
Banida do presente, em lago terno
voltes a me banhar e desencantes
o mar que clama em vão, de ondas cortantes
partindo do meu ser, banhando o eterno.
Eternizar o amor de um só momento
e quanto mais perdê-lo mais ganhá-lo.
E quanto mais ganhá-lo mais alento
trazer no que recordo e no que falo,
para que possa, em febre e em sentimento,
em mármore e em saudade, eternizá-lo.

Afonso Félix de Souza

08/12/2009

Nossa cama


Nossa cama

************
Olho nossa cama. Palco vazio

sem o drama, sem a comédia,

do nosso amor.

A nossa cama branca,

branca página, em silêncio,

de onde tudo se apagou...


(Meu Deus! quem poderia ler aquelas ânsias, aqueles gemidos,

aqueles carinhos

que a mão do tempo raspou, como nos velhos

pergaminhos?...)


A nossa cama

imensa, como a tua ausência,

tão ampla, tão lisa, tão branca, tão simplesmente cama,

e era, entretanto, um mundo,

de anseios, de viagens, de prazer,

- oceano, que teve ondas e gritos encapelados,

nele nos debatemos tanta vez como náufragos

a nadar... e a morrer...


Olho a nossa cama, palco vazio,

em nosso quarto, - teatro fechado –

que não se reabrirá nunca mais...


Nossa cama, apenas cama, nada mais que cama

alva cama, em sua solidão

em seu alvor...


Nossa cama

- campa (sem inscrição)

do nosso amor.


( Poema de J. G. de Araujo Jorge,

do livro – Quatro Damas – 1965
Image: gettyimages.com)

07/12/2009

NO CORPO


NO CORPO
....................

De que vale tentar reconstruir com palavras
O que o verão levou

Entre nuvens e risos

Junto com o jornal velho pelos ares

O sonho na boca, o incêndio na cama,o apelo da noite

Agora são apenas esta

contração (este clarão)

do maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente.




Ferreira Gullar

06/12/2009

Tarde demais...

Tarde demais...

Quando chegaste enfim, para te ver
Abriu-se a noite em mágico luar;
E para o som dos teus passos conhecer
Pôs-se o silêncio, em volta, a escutar...
.
Chegaste, enfim! Milagre de endoidar!
Viu-se nessa hora o que não pode ser:
Em plena noite, a noite iluminar
E as pedras do caminho florescer!
.
Beijando a areia de oiro dos desertos
Procurara-te em vão! Braços abertos,
Pés nus, olhos a rir, a boca em flor!
.
E há cem anos que eu era nova e linda!...
E a minha boca morta grita ainda:
Porque chegaste tarde, ó meu Amor?!...

Florbela Espanca,
Livro de Soror Saudade (1923)

05/12/2009

Diálogo


Diálogo

............

Debruçados sobre a vida

Indagamos seus mistérios

e raramente dançamos

suas respostas cifradas.

Ao calor do interrogar-se

Nuvens ocultas esgarçam-se

A luz em nós amanhece.

...

Helena Kolody

03/12/2009

A Pior Solidão "


"A Pior Solidão "
Pior do que a solidão pura e simples,
a solidão dos ascetas
ou dos insanos,
( a mansa solidão, torre de êxtase e prece
- ou a áspera solidão que aterra e que apavora,)
é esta povoada pelo fantasma de um amor
que havemos de carregar pelos anos afora...
(Poesia de J. G. de Araujo Jorge ,
- De mãos dadas- 2a edição 1966)

02/12/2009

Hai Kai


Tão longa a jornada!
E a gente cai, de repente
No abismo do nada.
.
Helena Kolody

01/12/2009

Mistério


Mistério

.............



Gosto de ti, ó chuva, nos beirados,

Dizendo coisas que ninguém entende!

Da tua cantilena se desprende

Um sonho de magia e de pecados.


Dos teus pálidos dedos delicados

Uma alada canção palpita e ascende,

Frases que a nossa boca não aprende,

Murmúrios por caminhos desolados.


Pelo meu rosto branco, sempre frio,

Fazes passar o lúgubre arrepio

Das sensações estranhas, dolorosas...


Talvez um dia entenda o teu mistério...

Quando inerte, na paz do cemitério,

O meu corpo matar a fome às rosas!

***

Florbela Espanca