29/12/2010

"Als ich kann (Como eu posso)?"

"Mulher com guarda-sol", de Claude Monet.
***

"Cada um guarda no fundo de si mesmo uma espécie de pequeno cemitério, onde jazem as pessoas que amou. Aí dormem elas, durante anos, sem que nada as desperte. Mas, chega o dia - sabe-se bem - em que a cova se abre. Os mortos erguem-se do túmulo e sorriem ao amante, ao amado, em cujo seio a sua recordação repousa , tal qual a criança que dorme nas entranhas maternas.

[...] A gente não faz o que quer. Querer e viver são duas coisas diferentes. É preciso conformar-nos. O essencial é não cansar de querer e viver. O resto não depende de nós.

Als ich kann (Como eu posso)?"




("Jean-Christophe ", de Romain Rolland, vol I, págs. 354, 412 e 413)

28/12/2010

Múltipla escolha


Postei-me na beira do palco:
terminada a última cena
e a derradeira fala,
o gesto final concluído.
Dobro-me em dois para agradecer,
pois me aplaudem:
pareço uma criança pronta para entrar
numa cena nova.

Se eu erguer o rosto e abrir os olhos,
se pedir papel e caneta
ou meu computador,
poderei reescrever tudo ou parte
do que fiz.
E todos os palcos em todos os teatros
do mudo
terão nessa hora um espetáculo novo.
Pois cada sopro de voz aqui
e cada gesto que se desenha
reverberam por todos os quartos
que se expandem
e corredores que se desenrolam,
na renovação do sonho
e completude do círculo
- para sempre
do sempre
amém. 

Lya Luft

21/12/2010

O cenário é uma casa,
cabana ou castelo.
Alguns manequins de plástico
 são os atores;
Soldados, reis, servos
- e alguém que já morreu.

Portas abrem ou fecham
num longo corredor,
para eu inventar objetos 
ou falas.

Porque teatro é mentira,
posso mudar tudo:
criar árvores no mar,
pássaros e trilhas
que se entrecruzam
incomunicáveis.

(Mas, por cima,
como estrelas,
eu vou botar
palavras).
Lya Luft

20/12/2010

Das pedras





Ajuntei todas as pedras
Que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
E no alto subi.
Teci um tapete floreado
E no alto me perdi.
Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.
Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.
Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude
dos meus versos.

Cora Coralina

19/12/2010

Múltipla escolha (sobre a morte)

"Até no luto temos que assumir novas posturas: sofrer vai ficando fora de moda.
        Contrariando a mais elementar psicologia, mal perdemos uma pessoa amada, todos nos instigam a passar por cima. 'Não chore, reaja', é o que ouvimos. 'Limpe a mesa dele, tire tudo do armário dela, troque móveis, roupas de cama, mude de casa.' Tristeza e recolhimento ofendem nossa paisagem de papelão colorido. Saímos do velório e esperam que se vá depressa pegar a maquilagem, correr para a academia, tomar o antidepressivo, depressa, depressa, pois os outros não aguentam mais, quem que saber da minha dor?"
Lya Luft 

18/12/2010

Múltipla escolha

Acabei de ler Múltipla Escolha, da Lya Luft. Gostei, apenas não concordei com uma ou outra frase. Mas ela é sábia...

"Alguém me chama, bem atrás
na platéia:
um aceno, uma voz sumida
parece dizer meu nome.
(É alguém de óculos,
pois as lentes refletem a luz
do teto).
Posso responder, devo
acenar de volta?
Atrás de mim
alguém vestes os bonecos da vida
e as estátuas da morte.
Euforia e medo,
é com eles que vou contracenar
(ou é comigo mesmo?).
Por cima do meu nariz de palhaço
ajeito os óculos para ver melhor."

17/12/2010

Alma Perdida



Toda esta noite o rouxinol chorou,

Gemeu, rezou, gritou perdidamente!

Alma de rouxinol, alma da gente,

Tu és, talvez, alguém que se finou!



Tu és, talvez, um sonho que passou,

Que se fundiu na Dor, suavemente…

Talvez sejas a alma, a alma doente

D’alguém que quis amar e nunca amou!



Toda a noite choraste… e eu chorei

Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei

Que ninguém é mais triste do que nós!



Contaste tanta coisa à noite calma,

Que eu pensei que tu eras a minh’alma

Que chorasse perdida em tua voz!…



Florbela Espanca - Livro de Mágoas

16/12/2010

Rústica




Eu q’ria ser camponesa;
Ir esperar-te à tardinha
Quando é doce a Natureza
No silêncio da devesa,
E só voltar à noitinha…

Levar o cântaro à fonte
Deixá-lo devagarinho,
E correndo pela ponte
Que fica detrás do monte
Ir encontrar-te sozinho…
 
E depois quando o luar
Andasse pelas estradas,
D’olhos cheios do teu olhar
Eu voltaria a sonhar,
P’los caminhos de mãos dadas.
 
E depois se toda a gente
Perguntasse: “Que encarnada,
Rapariga! Estás doente?”
Eu diria: “É do poente,
Que assim me fez encarnada!”

E fitando ao longe a ponte,
Com meu olhar cheio do teu,
Diria a sorrir pro monte:
“O cant’ro ficou na fonte
Mas os beijos trouxe-os eu…"


Florbela Espanca - O Livro D’Ele




12/12/2010

Disquisição na insônia



Que é loucura: ser cavaleiro andante

Ou segui-lo como escudeiro?

De nós dois, quem o louco verdadeiro?

O que, acordado, sonha doidamente?

O que, mesmo vendado,

Vê o real e segue o sonho

De um doido pelas bruxas embruxado?

Eis-me, talvez, o único maluco,

E me sabendo tal, sem grão de siso,

Sou - que doideira - um louco de juízo.

Carlos Drummond de Andrade

11/12/2010


A janela de meu mundo

ampliada,

paisagens que se sucediam,

profusão de cores e alegria.

Hoje, janela estreitada,

meu mundo reduzido a quase nada,

mal vejo a vida passar.
 
Liz Guides
1989
Foto: São Paulo
(Liz Guides)

10/12/2010

De aqui a pouco

De aqui a pouco acaba o dia.
Não fiz nada.
Também, que coisa é que faria?
Fosse a que fosse, estava errada.

De aqui a pouco a noite vem.
Chega em vão
Para quem como eu só tem
Para o contar o coração.

E após a noite e irmos dormir
Torna o dia.
Nada farei senão sentir.
Também que coisa é que faria?

Fernando Pessoa

08/12/2010

Renúncia


Renúncia


Eu queria uma vida assim com você,
Assim sem relógio e sem dedo em riste,
Sem lei e sem sociedade,
Sem satisfação e sem chau!
Eu queria uma vida assim com você,
Mas, felizmente, meu querer não é tudo
E meu poder é limitado.
Felizmente, minha palavra se esvai
E este papel se amarela.
Felizmente porque o bom é a espera.
A incerteza e o talvez são molas propulsoras;
Porque senão a alegria não teria razão
E o chegar não teria partida.
Eu queria uma vida assim com você,
Sem lenço e sem documento,
Mas, o bacana é o adeus, é a volta,
É o riso depois do choro,
É o hoje sofrido e o amanhã exultante.
O bacana é o crescente, a renúncia,
A noite mal dormida, a consciência,
O bacana é a luta,
É saber que existe o perdão.
É a dúvida do "não quero", mas quero!
Eu queria uma vida assim com você,
Mas dou graças por não ter,
Porque só assim eu posso escrever tudo isto,
Só assim eu posso medir-me,
Posso certificar a limitação humana.
Só assim eu sei que nada sou,
Que vivo capengando,
Carregando o que dá
E caindo com o que não dá.
Só assim eu sei o quanto lhe quero,
quanto posso, mas o quanto não devo!

(Neimar de Barros)




03/12/2010

" Distraído ? "



Levo sempre esse ar de quem vai conversando
com alguém...
Entretanto
sigo sozinho
e não vejo ninguém...
...................................................................................

Tão fácil o mistério:
tu me acompanhas por toda parte,
mas eu apenas sei disto...



( Poema de J.G. de Araújo Jorge

do livro "ESPERA..."- 1960 )

02/12/2010

Quero apenas...


Quero apenas cinco coisas...
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser… sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando.
 
Pablo Neruda

01/12/2010

Múltipla escolha



Pintei o cenário
e o coloquei no prumo;
varri a plateia,
arrumei os bastidores.
No camarim, frutas e champanha:
eu seria a personagem principal.
Depois repassei as minhas falas,
provei as minhas fantasias,
e me pus a chorar:
numa escada invertida,
nem em cima
nem embaixo,
passavam estranhas figuras,
grandes demais para mim.

(Eu adava pelo palco,
sem sapatos nem rumo).

Lya Luft,
in: Múltipla Escolha, p. 14.

30/11/2010

Paraíso Perdido

  Penso isto: penso que devemos fugir para nós mesmos.

Não são apenas os amigos que nos levam sem reação,

são os cinemas, os teatros, as horas que perdemos nas ruas

quando nosso quarto se fecha silencioso, sem tempo

e esperanças.

Não são apenas as horas que o trabalho me rouba

inapelavelmente, e que não me serão devolvidas.

É a nossa vida, feita sem tempo e de desencontros,

sem pausa para a criação, sem paz para o recolhimento,

sem silêncio para o pensamento, sempre ininterrupta,

passando por nós, enquanto nos deixamos ficar sem alcançá-la...

Penso isto: só a fuga para nós mesmos seria a salvação.

Conheço um amigo pintor que se encontrou em Itatiaia

e ouve o canto dos pássaros e das águas junto às Agulhas Negras.

Meu amor: sinto que vamos chegando à hora em que

devemos voltar ao Paraíso,

ou jamais o reconquistaremos.

(Poema de J. G. de Araujo Jorge,

do livro Antologia Poética - 1978 )

29/11/2010

A hora da partida


A hora da partida soa quando

Escurece o jardim e o vento passa,

Estala o chão e as portas batem, quando

A noite cada nó em si deslaça.


A hora da partida soa quando

as árvores parecem inspiradas

Como se tudo nelas germinasse.


Soa quando no fundo dos espelhos

Me é estranha e longínqua a minha face

E de mim se desprende a minha vida.


Sophia de Mello Breyner Andresen
poetisa portuguesa






28/11/2010

"Lírica Nº 38 "



Que voltes antes de anoitecer...
Antes que as sombras desçam irremediavelmente

sobre o coração.

Que eu ainda te possa ver refletida em meus olhos,

e ainda reconheças as pegadas de antes

indeléveis, no chão.

J. G. de Araújo Jorge


27/11/2010

Amor


O ser busca o outro ser, e ao conhecê-lo

acha a razão de ser, já dividido.

São dois em um: amor, sublime selo

que à vida imprime cor, graça e sentido.



"Amor" - eu disse - e floriu uma rosa

embalsamando a tarde melodiosa

no canto mais oculto do jardim,

mas seu perfume não chegou a mim.

Carlos Drummond de Andrade
1985 - AMAR SE APRENDE AMANDO

26/11/2010

Aqui se está sossegado...

Aqui está-se sossegado,

Longe do mundo e da vida,

Cheio de não ter passado,

Até o futuro se olvida.

Aqui está-se sossegado.

Tinha os gestos inocentes,

Seus olhos riam no fundo.

Mas invisíveis serpentes

Faziam-a ser do mundo.

Tinha os gestos inocentes.

Aqui tudo é paz e mar.

Que longe a vista se perde

Na solidão a tornar

Em sombra o azul que é verde!

Aqui tudo é paz e mar.

Sim, poderia ter sido...

Mas vontade nem razão

O mundo têm conduzido

A prazer ou conclusão.

Sim, poderia ter sido...

Agora não esqueço e sonho.

Fecho os olhos, oiço o mar

E de ouvi-lo bem, suponho

Que veio azul a esverdear.

Agora não esqueço e sonho.

Não foi propósito, não.

Os seus gestos inocentes

Tocavam no coração

Como invisíveis serpentes.

Não foi propósito, não.

Durmo, desperto e sozinho.

Que tem sido a minha vida?

Velas de inútil moinho —

Um movimento sem lida...

Durmo, desperto e sozinho.

Nada explica nem consola.

Tudo está certo depois.

Mas a dor que nos desola,

A mágoa de um não ser dois

Nada explica nem consola.

Fernando Pessoa,
in: Poesias Inéditas.


















































25/11/2010

MORRO DO QUE HÁ NO MUNDO





Morro do que há no mundo:
do que vi, do que ouvi.
Morro do que vivi.
Morro comigo, apenas:
com lembranças amadas,
porém desesperadas.
Morro cheia de assombro
por não sentir em mim
nem princípio nem fim.
Morro: e a circunferência
fica, em redor, fechada.
Dentro sou tudo e nada.

(Poesias completas de Cecília Meireles)




24/11/2010

VIDA É UMA VITRINA...

A VIDA É UMA VITRINA...

Graciette Salmon (Poetisa Paranaense)



A Vida é uma vitrina de tecidos.

A gente, por instantes,

fica de olhos perdidos

na beleza das telas deslumbrantes.

Depois, entra na loja e vai comprar.

Caixeirinha gentil, a Ilusão

vem vender ao balcão

e não se cansa de mostrar,

não se cansa

de exibir delicados,

rendilhados,

leves panos de Sonho e de Esperança.

As mãos tocam de leve

na leveza das telas.

Não vá o gesto, por mais breve,

esgarçar uma delas!

Todas tão lindas! Mas a que fascina

não está ali na grande confusão

das peças espalhadas no balcão.

E a gente diz,

num ar feliz:

"Levo daquela rósea, muito fina,

exposta na vitrina."

Logo o Destino vem (da loja é o dono)

e fala sobranceiro, com entono:

"É artigo raro.

Marca, padrão e cor: - Felicidade.

É um artigo de alta qualidade

o mais caro

de todos os tecidos.

São cortes especiais...e estão vendidos!"

...................................................................

E a gente vai comprar do áspero pano

que se encontra na seção do Desengano.

23/11/2010

Arte do chá

ainda ontem
convidei um amigo

para ficar em silêncio

comigo

ele veio

meio a esmo

praticamente não disse nada

e ficou por isso mesmo

Paulo Leminski





22/11/2010

A tua voz fala amorosa...

Qual é a tarde por achar
Em que teremos todos razão
E respiraremos o bom ar
Da alameda sendo verão,

Ou, sendo inverno, baste 'star
Ao pé do sossego ou do fogão?
Qual é a tarde por voltar?
Essa tarde houve, e agora não.

Qual é a mão cariciosa
Que há de ser enfermeira minha -
Sem doenças minha vida ousa -
Oh, essa mão é morta e osso... 
Só a lembrança me acarinha
O coração com que não posso.

Fernando Pessoa 

21/11/2010

Expectativas


tudo começa
do mesmo jeito
diferente

o que se quebra
pesa mais
do que o sonho leva

como se o dia
não passasse
dessa noite

Alice Ruiz


(do "Dois em Um)

20/11/2010

Para atravessar contigo o deserto do mundo

Para atravessar contigo o deserto do mundo

Para enfrentarmos juntos o terror da morte.

Para ver a verdade, para perder o medo,

Ao lado dos teus passos caminhei.

Por ti deixei meu reino meu segredo,

Minha rápida noite, meu silêncio,

Minha pérola redonda e seu oriente

Meu espelho, minha vida, minha imagem,

E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro.

Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo.

Por isso com teus gestos me vestiste

E aprendi a viver em pleno vento.


(Sophia de Mello Breyner Andresen, in Livro Sexto)