14/10/2012

Assim que te quero


É assim que te quero, amor,
assim, amor, é que eu gosto de ti,
tal como te vestes
e como arranjas
os cabelos e como
a tua boca sorri,
ágil como a água
da fonte sobre as pedras puras,
é assim que te quero, amada,
Ao pão não peço que me ensine,
mas antes que não me falte
em cada dia que passa.
Da luz nada sei, nem donde
vem nem para onde vai,
apenas quero que a luz alumie,
e também não peço à noite explicações,
espero-a e envolve-me,
e assim tu pão e luz
e sombra és.
Chegastes à minha vida
com o que trazias,
feita
de luz e pão e sombra, eu te esperava,
e é assim que preciso de ti,
assim que te amo,
e os que amanhã quiserem ouvir
o que não lhes direi, que o leiam aqui
e retrocedam hoje porque é cedo
para tais argumentos.
Amanhã dar-lhes-emos apenas
uma folha da árvore do nosso amor, uma folha
que há de cair sobre a terra
como se a tivessem produzido os nosso lábios,
como um beijo caído
das nossas alturas invencíveis
para mostrar o fogo e a ternura
de um amor verdadeiro. 
Pablo Neruda

26/05/2012

O lado fatal (para o Gui)

I
Quando meu amado morreu, não pude acreditar:
andei pelo quarto sozinha repetindo baixo:
"Não acredito, não acredito."
Beijei sua boca ainda morna,
acarinhei seu cabelo crespo,
tirei sua pesada aliança de prata com meu nome
e botei no dedo.
Ficou larga demais, mas mesmo assim eu uso.
II
Muita gente veio e se foi.
Olharam, me abraçaram, choraram,
todos com ar de uma incrédula orfandade.
III
Aquele de quem hoje falam e escrevem
(ou aos poucos vão-se esquecendo)
é muito menos do que este, deitado em meu coração,
meu amante e meu menino ainda.
IV
Deus
(ou foi a Morte?)
golpeou com sua pesada foice
o coração do meu amado
(não se vê a ferida, mas rasgou o meu também).
Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado,
disse bem alto meu nome no quarto do hospital,
e partiu.
Quando se foram também os médicos e suas
[ máquinas inúteis,
ficamos sós: a Morte (ou foi Deus?)
o meu amado e eu.
Enterrei o rosto na curva do seu ombro
como sempre fazia,
disse as palavras de amor que costumávamos trocar.
O silêncio dele era absoluto: seu coração emudecido
e o meu, varados por essa dourada foice.
Por onde vou deixo o rastro de um sangue denso
[e triste
que não estancará jamais.
V
Insensato eu estar aqui, e viva.
O rosto dele me contempla
vincado e triste no retrato sobre minha mesa;
em outros, sorri para mim, apaixonado e feliz.
Insensato, isso de sobreviver:
mas cá estou, na aparência inteira.
Vou à janela esperando que ele apareça
e me acene com aquele seu gesto largo e generoso,
que ao acordar esteja ao meu lado
e que ao telefone seja sempre a sua voz.
Sei e não sei que tudo isso é impossível,
que a morte é um abismo sem pontes
(ao menos por algum tempo).
Sobrevivo, mas pela insensatez.
VI
Pensei que estávamos apenas no começo:
a casa mal-e-mal nos alicerces.
Mas provavelmente estava concluída
e eu não sabia.
Tínhamos erguido em nossos poucos anos
as paredes necessárias;
o telhado se inclinava ao jeito certo,
e havia vidraças nas janelas.
(Éramos felizes ali dentro
mesmo com as tempestades de fora.)
Tudo se construiu num lapso tão curto:
até a porta de entrada, por onde ele saiu
casualmente como quem vai comprar jornal.
A porta está apenas encostada
embora pareça alta, dura, intransponível:
do lado de lá, o meu amor vê as maravilhas
que tanto nos intrigavam nesta vida.
VII
Tanto escrevi sobre a morte
em livros e poemas nesses anos:
sempre achei que a entendia um pouco.
Mas agora que ela me dilacerou a vida,
me rasgou o peito,
me levou o amado,
sinto que mal começo a compreender
sua mensagem:
tirando-o de mim, a morte o devolve
para que seja mais meu.
Dentro de mim um quebra-cabeças, e nele
[o meu amado.
Nem Deus o tirará daqui.
VIII
O meu amado morreu:
viver sem ele, como dói.
Não tivemos filhos juntos,
nosso passado foi tão breve que era sempre
[presente.
Um dia ele mandou fazer um par de alianças
de pesada prata, parecendo antigas;
gravou apenas nossos nomes, sem data, e disse:
"Somos um só desde sempre."
Ainda não acreditei em sua morte,
e talvez isso me salve por enquanto.
Levantar-me da cama cada dia é um ato heróico,
acender o cigarro, atender o telefone, tomar café.
Mas faço tudo isso:
falo, ando, recebo visitas.
Compro móveis para a casa onde moro sem ele,
imaginando: será que ele vai gostar?
De algum secreto lugar me vem a força
para erguer a xícara, acender o cigarro,
até sorrir quando alguém me diz:
"Você hoje está com a cara ótima",
quando penso se não doeria menos
jogar-me de um décimo-primeiro andar.
XIX
Amado meu, agora morto,
postado do lado de lá da fronteira que nos seduzia,
mudo e quedo como se não existisses:
eu sei que existes,
intensamente, ardentemente existes,
feito e desfeito no fogo de um amor maior que
[o nosso
mas que nos abrange.
Amado meu, morto agora e para sempre vivo,
hás de ter ainda o intenso olhar que me entendia,
as curvas amorosas da boca que chamou meu nome,
as belas, inquietas mãos que ardiam nas minhas.
Ajuda-me agora, silencioso que estás,
a suportar a sobrevida
e a decifrar esse alto, intransponível muro que me
[cerca.
X
Nunca tivemos filhos juntos, e ele reclamava:
"Nosso amor merecia um filho ao menos.
"Nosso filho é a minha dor de hoje,
é a fulguração que nos deixava tontos,
é o novelo da memória que teço e reteço
nas minhas insônias.
Nosso filho é o meu tempo de agora
para falar do meu amado:
da sua força e sua fragilidade,
da sua indignação e seus prantos,
da sua necessidade de ser amado e aceito
como finalmente deve estar sendo, por inteiro,
na realização de todos os seus vastos desejos.
XI
O meu amor enveredou por sua morte
como quem vai a um encontro de amor:
impaciente.
Deixou-me este coração golpeado,
esta derrota.
Mas também ficou a claridade desses anos
e a sensação de que ele finalmente
vive o encontro de amor
que toda a devoção de minha vida não lhe poderia
[dar. (Um dia, celebraremos juntos.)
XII
Se me tivessem amputado braços e pernas
e furado o coração com frias facas
e cegado meus olhos com ganchos
e esfolado a minha pele como a de um podre bicho
- nada doeria mais
que te saber morto, amado meu,
depositado
nesse irremediável poço de silêncio de onde não
[respondes.(A não ser em sonho, quando me olhas
e tuas mãos tocam as minhas espalmadas,
abertas, feridas, vazias.)
XIII
O meu amado morreu:
preciso viver sua morte até o fim.
Morreu sem que se instalasse entre nós cansaço e
[banalidade.
Talvez tenha morrido na medida certa
para nada se desgastar.
Dele me vem a dor, mas também a ternura,
a claridade que me permite ver
em todos os rostos o seu rosto
em todos os vultos o seu vulto
e ouvir em todos os silêncios
o seu inesperado riso de criança
XIV
Estranha a vida:
fico tangendo meus dias
como um rebanho de ovelhas desordenadas
nessa triste e fria cidade de Porto Alegre
onde ele gostava de estar
olhando o pôr-do-sol e vendo amigos.
"Morrer é tomar um porre de não-desejo"
dizia o meu amado, que era um homem desejoso:
desejava a vida, desejava a morte, desejava
[a justiça,
desejava a eternidade e a paz.
Estranha a vida:
quando releio uma frase sua,
"viver é modular a morte",
em sangue e dor preparo a minha ida.
Estranho também esse amor,
com hora marcada para a mutilação
da morte, o minuto acertado,
e o fim consultando o relógio
para nos golpear.
Estranho esse amor de agora,
com meu amado atrás de um espelho baço
onde às vezes penso divisar seu vulto
como num aquário.
Enrolado em silêncio,
mais que nunca o meu amor comanda a minha vida.
XV
Não falem alto comigo:
andem sempre na ponta dos pés.
Principalmente, não me toquem.
Finjam que não vêem se tenho um jeito absorto,
se nem sempre entendo as perguntas
com a rapidez de antigamente,
se pareço fatigada
e sem graça como nunca fui.
Façam silêncio ao meu redor.
Não me interessa nada o cotidiano nem o místico.
Não quero discutir o preço do mercado
nem os grandes mistérios da eternidade.
XVI
Levo meu amado no peito
como quem carrega nos braços para sempre
uma criança morta.
XVII
Amado meu, que tanto ensinaste
de mim a mim mesma, e do mundo
a quem o conhecia pouco:
quando se desfizer escura a noite desta perda,
quero enxergar pelos teus olhos,
amar através do teu amor
as coisas que me restaram.
Amado meu, vivo em mim para sempre,
apesar da ruga a mais
e do olhar mais triste,
devo-te isto:
voltar a amar a vida
como agora amas, inteiramente,
a tua morte.
Lya Luft

10/05/2012

Fanatismo

Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão de meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

Tudo no mundo é frágil, tudo passa...
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, vivo de rastros:
"Ah!  Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!...

04/04/2012

Meta

Dispenso o emaranhado de tristeza.
Jogo a saudade sobre a mesa,
grudo os desapontos no teto.
Passo reto, abro alas.

Arrombo portas, devasso salas,
empurro mágoas pendentes no corredor.
Recolho um favor que, desprezado,
jaz no canto, roto e desbotado,
encosto de um lado um desafeto.
Abro alas, passo reto.

Banho-me lá fora
com a gota de lua caída da aurora,
e lavo minha história.

Quando enxuta,
divisam-se glórias impolutas.
Descubro-me mulher, guerreira, artista
e bato palma.

Abro meus braços, lavo a alma;
percebo logo ali um sol nascente.
Meu passo é reto,
abro alas.
Sigo em frente.


Flora Figueiredo

12/03/2012

Transeuntes


Transeuntes
da vida provisória:
que rumor de asas eternas
para além das fronteiras e dos símbolos!
 
Helena Kolody

11/03/2012

O tempo que não se perdeu


O tempo que não se perdeu
 Pablo Neruda

Não se contam as ilusões
nem as compreensões amargas,
não há medida para contar
o que não podia acontecer-nos,
o que nos rondou como besouro
sem que tivéssemos percebido
do que estávamos perdendo.
 
Perder até perder a vida
é viver a vida e a morte
não são coisas passageiras
mas sim constantes, evidentes,
a continuidade do vazio,
o silêncio em que cai tudo
e por fim nós mesmos caímos.
 
Ai! o que esteve tão cerca
sem que pudéssemos saber.
Ai! o que não podia ser
quando talvez podia ser.
 
Tantas asas circunvoaram
as montanhas da tristeza
e tantas rodas sacudiram
a estrada do destino
que já não há nada a perder.
 
Terminaram-se os lamentos.
 

25/02/2012

Caminho ao teu lado


Caminho ao teu lado mudo
Sentes-me, vês-me alheado...
Perguntas: Sim... Não... Não sei...
Tenho saudades de tudo...
Até, porque está passado,
Do próprio mal que passei.

Sim, hoje é um dia feliz.
Será. Não será, por certo
Num princípio não sei que
Há um sentido que me diz
Que isto - o céu longe e nós perto
É só a sombra do que é...

E lembro-me em meia-amargura
Do passado, do distante. E tudo me é solidão...
Que fui nessa morte escura?
Quem sou neste morto instante?
Não perguntes.. Tudo é vão.

Fernando Pessoa

17/02/2012

Temas e Voltas

Mas para quê
tanto sofrimento,
se nos céus há o lento
deslizar da noite?
Mas para quê
tanto sofrimento,
se lá fora o vento
é um canto na noite?
Mas para quê
tanto sofrimento,
se agora, ao relento,
cheira a flor da noite?
Mas para quê
tanto sofrimento,
se o meu pensamento
é livre na noite?”

(Manuel Bandeira)

16/02/2012

Livro: O Guardião de Memórias (The Memory Keeper's Daughter), Kim Edwards

      Hoje acabei a leitura deste livro, que minha sobrinha presenteou ao meu marido. Acredito que livros são um dos mais belos presentes que se pode ganhar.
     Comecei a ler dois dias depois do natal, mas acabei interrompendo por vários motivos. Mas é um livro de se ler avidamente, rapidamente, tão interessante é a história, que prende do começo ao fim. Afinal, assim são as histórias que falam dos sentimentos e dos erros humanos, das consequências que advém de atos impensados.
    A história começa no inverno de 1964, quando, durante uma tempestade, um médico ortopedista se vê obrigado a fazer o parto da esposa e, levado pelas sombras do passado, comete um erro que vai persegui-lo pelo resto da vida, alterando a vida dos envolvidos.  
     Agora quero ver o filme, com Dermot Mulroney no papel do médico e direção de Mick Jackson.

06/02/2012

O Livro de Eli (The Book of Eli, EUA, 2010, 118 min)

Eli (Denzel Washington) é um guerreiro e andarilho solitário )que sobreviveu a uma guerra pós-apocalíptica), cuja missão é atravessar os Estados Unidos para conseguir passar adiante conhecimentos que podem ser a chave para a redenção do planeta, escritos em um misterioso livro. Para isso, precisa atravessar uma cidade dominada pelo vilão interpretado por Gary Oldman. Seu texto tem muitas semelhanças com Mad Max, sua crítica ao poder de igreja católica é fraca, um filme cheio de merchandising (Motorola, Ipod, Zippo, KFC), que não cumpriu o que prometeu. Com Malcolm Mac Dowell, Evan Jones, Jeaniffer Beals e Mila Kunis.
Dirigido por Albert e Allen Hughes.

02/02/2012

Caminhos



Caminhando e pisando o chão
à procura de folhas secas
e dos sons de seus passos.

Caminhando e olhando o céu
à procura de estrelas
e do brilho do seu olhar.

Caminhando e olhando em meu coração
à procura de uma verdade
que nem a morte pode apagar:

O amor jamais acaba.

Liz Guides - 1982


23/01/2012

Para não dizer adeus

Meu reino é o do silêncio, mais
que o das palavras. Nele tudo pode ser dito
e desinventado: as entrelinhas
transbordam dos meus contornos.

Minha alma, guerreira ou mendiga,
inocente menina ou bruxa perversa,
faz dessa teia de caos e luz uma viagem
com sempre um novo ponto de partida.

E desenrola infinitamente o teu nome,
que é todos os nomes, e não é miragem:
Vidaminhavidaminhavidaminha...
(E nunca mais ter de dizer adeus).

Lya Luft

22/01/2012

Boca de Cena

O coração explodido
na dor acumulada e na fadiga:
o morto ensaia outros passos
ao ritmo da nova amante.
(Morrer é mais do que uma escolha).

Baixa uma cunha de luz
sobre os que velam:
o morto espreita atrás do cenário,
de braço dado com a morte.
Na plateia, silêncio e surdez:
somos os não-iniciados.

Mas há quem conheça o roteiro:
alguém distribui os papéis, alguém
vai pronunciar nossos nomes.
Ninguém será esquecido
no palco onde nos aguardam:
fomos vistos, fomos registrados,
seremos chamados.

Lya Luft in:
Para não dizer adeus
(Ed. Record)