28/06/2011

39. Meu jeito

Quando pareço ausente, não creias: 
hora a hora meu amor agarra-se a teus braços, 
hora a hora meu desejo revolve teus escombros,
e escorrem dos meus olhos mais promessas.

Não acredites nesse breve sono;
não dês valor ao meu silêncio;
e se leres recados numa folha branca,
não creias também: é preciso encostar
teus lábios nos meus lábios para ouvir.

Nem acredites se pensas que te falo:
palavras
são meu jeito mais secreto de falar.
Lya Luft.

27/06/2011

38, Terceiro poema da cega

O mundo filtra-se pelos ouvidos
de quem não vê senão a própria noite:
meus olhos pegam sons com dedos falhos
mas nada tem substância aqui mais dentro.
Risos e palavras nesta sombra eterna
chegam e nada, giram, se entrechocam
em desenhos de luz que não entendo.

Estendo meu coração, ouvido inquieto,
em busca de algum som definitivo
que abra em claridade estes dois olhos secos,
e me lance desta pedra em voo a céu aberto.
Lya Luft

24/06/2011

37. Mar de Menina

Havia um mar,
e ali brotava uma ilha
povoada de lobos e de pensamentos.
Havia um fundo escuro e belo
onde os náufragos dançavam
com sereias.
Havia ansiedade e abraço.
Havia âncora e vaguidão.

Brinquei com peixes e anjos,
fui menina e fui rainha,
acompanhada e largada,
sempre a meia altura
do chão.

A vida um barco, remos ou ventos,
tudo real e tudo
ilusão.

Lya Luft.

19/06/2011

36. Queda Livre

Bem que eu queria dormir,
mas isso que não esqueço
me chama a noite inteira,
sem nome e sem piedade.

Se abro os olhos, eu caio
no esquecimento. Se durmo,
apagam-se as esperanças
- e não me sobra mais nada.

Devo largar minhas perdas
que ficaram na soleira
entre o passado e o recomeço?
Sempre que me levanto
eu perco um novo pedaço:
ouço os cacos rolando
a noite toda na escada.

Lya Luft

10/06/2011

35. Mar Demais

O mar das nossas viagens

divide horizontes e cais,
e nos dois lados acena
a opção de ir ou ficar.
Quem navega, não pensa
em perda nem permanência:
só busca ocaminho das ondas
e do ar.

O mar da esperança é fundo,
quem nele navega é rei:
pois se estrelas são miragem
entre cais e horizonte, cada viagem
chega mais perto da fonte:
isso não se pode medir nem
mudar.
Lya Luft

09/06/2011

34. Segundo poema da cega


Homens são passos, e mulheres vozes
que se aproximam, param e se esquivam
sem criar raízes nesta treva.
Beijam-se às vezes como num murmúrio,
e eu aperto os lábios solitários
para depois, num mundo só de beijos,
pousar as mãos sobre meus olhos mortos
para que baixe nesses desamados
algum carinho, a medo.

Lya Luft

08/06/2011

33. Demasia

DEMASIA

(para as mães excessivas)




Os filhos que pari trilharam seus caminhos
(como dizem que deve ser)
Eu não me conformei: andei em seus calcanhares,
lancei-me em mil direções, fiquei perdida
nesta casa vazia.
Toda a noite espreito os velhos quartos
para ver se as memórias dormem direito,
se escovaram os dentes, fizeram as lições.


Meus filhos tiveram outros,
e eu me fragmentei ainda mais.
No espelho não vejo ninguém:
virei poeira de gente, soprada entre eles.
Tanto me entranhei em suas vidas,
que tentam limpar-se de mim
para poderem crescer,para não serem
meus filhos.


Lya Luft






Do livro Para não dizer adeus, Ed. Record

07/06/2011

32. Jazz

A boca extrai mel do metal:
contraponto, fingido desencontro,
pois tudo é trama de som e desejo
em espirais.

A boca
extrai segredos de mel
onde antes nada se movia.
O primeiro olhar já foi mar alto:
estás cada vez mais perto, estás
cada vez mais dentro.

O amor extrai mel do metal:
duas almas banidas voltam do desterro,
os destinos giram entrelaçados
no descompasso, na penumbra, na magia.

Lya Luft

06/06/2011

31. Composição

Quando perdi quase tudo,

descobri que a dor
não era maior que o sonho.
Quando esqueci o caminho,
vi que o horizonte
ficava do lado errado.
Quando só o meu rosto
sobrava em cada espelho
(e nada do lado de cá),
juntei desalento e desejo
e me reinventei
com carinho.


(Agora pareço comigo
antes de o amor ser
cancelado.)


Lya Luft

05/06/2011

30. Dádiva

Derrama sobre mim tua esperança de homem,
tanto tempo contida:
planta em meu solo a árvore da renovação,
mais alta que a noite escura.

Larga a solidão, apaga a desesperança,
inventa um novo reino
onde as águas não são naufrágio,
nem o amor desengano.

Vem para esta enseada, onde há ventania
e risco, mas podes ancorar teu coração
depois da longa procura,
para que ele pouse e pulse e brilhe

como a estrela-do-mar em seu fundo
de oceano.

Lya Luft  

04/06/2011

29. A Casa no Mar



Era uma vez um corredor de amores,
e uma casa ancorada no tempo da vida
para não naufragar.

Era uma vez viagens e descobrimentos.
Era uma vez uma infância dourada
e um quebra-cabeça possível de armar.

Era uma vez- e ainda respira em mim
com um cavalo alado -
aquele mar.

Lya Luft

03/06/2011

28. Somos inocentes

A parte dura desta humana lida
é dizer sim na hora do não,
escolher mal entre silêncio e grito,
entre a noite e a explosão
do dia.

Ceder quando deveríamos negar, dizer
não em lugar  de afirmar, partir
quando era bom amar, fechar-se
em vez de resgatar
a vida.

Sermos tão incertos e indecisos,
perdendo o trem, a hora,
o agora: mas a gente
não sabia.

Lya Luft

02/06/2011

27. Pressentimento

Quando eu era menina,
minha mãe tocava piano
e a árvore de Natal girava
em sua pinha de ferro batido.
Eu cochilava no colo de meu pai:
dentro do peito dele pulsava
a máquina da vida que nunca se cala.
(Mas uma coisa escura e sorrateira
fazia rumor fora de casa:
era o destino chegando
passo a passo, e eu não sabia.)

Junto ao coração de eu pai,
ao ritmo da música do sangue,
meu coração também estremecia:
a faca cortando a minha alma
era pressentir que as águas do mundo
inundariam o tempo e o espaço,
e seríamos um dia os rostos naufragados
de um velho retrato numa mala.

Lya Luft 

01/06/2011

26. Anistia

Bela Dama,
nas mãos discretas esconde
a fita, o metro, a medida
da nossa vida.
Bela Dona,
aguarda com paciência
a hora de nos botar no colo:
tudo estará consumado
nesse dia.
(Mesmo o não compreendido.)

Velhas palavras nos lábios,
nos olhos novas paisagens,
seremos poupados,
seremos absolvidos,
seremos isentados.

Mas nós nos daremos
anistia?

Lya Luft
(Quadro: Claude Monet)