31/12/2013

Amor e Seu Tempo

Amor e Seu Tempo

Amor é privilégio de maduros
Estendidos na mais estreita cama,
Que se torna a mais larga e mais relvosa,
Roçando, em cada poro, o céu do corpo.
É isto, amor: o ganho não previsto,
O prêmio subterrâneo e coruscante,
Leitura de relâmpago cifrado,
Que, decifrado, nada mais existe
Valendo a pena e o preço do terrestre,
Salvo o minuto de ouro no relógio
Minúsculo, vibrando no crepúsculo.
Amor é o que se aprende no limite,
Depois de se arquivar toda a ciência
Herdada, ouvida. amor começa tarde.

Carlos Drummond de Andrade

17/10/2013

Como nuvens

Como nuvens pelo céu
passam os sonhos por mim.
Nenhum  dos sonhos é meu
embora os sonhe assim.
São coisas no alto que são
enquanto a vista as conhece,
depois são sombras que vão
pelo campo que arrefece.

Símbolos? Sonhos? Quem torna
meu coração ao que foi?
Que dor de mim me transforma?
Que coisa inútil me dói?

Fernando Pessoa

Foto: Liz Guides

16/10/2013

Alma minha

 

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste. 

Se lá no assento etéreo, onde subiste
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
 

E se vires que pode merecer-te
Alguma coisa a dor que me ficou
Da mágoa sem remédio de perder-te.

Rogo a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.


Luís Vaz de Camões 
(c. 1524 – 10.06.1580)


Gui (1957-1976) 

05/09/2013

Primavera (Cecília Meireles)


A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.

Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.

Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.

Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.

Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.

Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.

Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.

Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.

Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.

Texto extraído do livro "Cecília Meireles - Obra em Prosa - Volume 1", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1998, pág. 366.


21/06/2013

Devolve

Devolve toda a tranqüilidade
Toda a felicidade
Que eu te dei e que perdi.

Devolve todos os sonhos loucos
Que eu construí aos poucos
E te ofereci.

Devolve, eu peço, por favor
Aquele imenso amor
Que nos teus braços esqueci.

Devolve, que eu te devolvo ainda
Esta saudade infinda
Que eu tenho de ti.

Mário Lago

20/06/2013

Sonhos

"Há quem diga que todas as noites são de sonhos.
Mas há também quem garanta que nem todas,
   só as de verão.
No fundo isso não tem importância.
O que interessa mesmo não são as noites em si,
são os sonhos.
Sonhos que o homem sonha sempre.
Em todos os lugares, em todas as épocas do ano,
   dormindo ou acordado."

William Shakespeare

19/06/2013

Concerto para corpo e alma

Compreendi, então, que a vida não é uma sonata que, para realizar a sua beleza, tem de ser tocada até o fim.
Dei-me conta, ao contrário, de que a vida é um álbum de mini sonatas.
Cada momento de beleza vivido e amado, por efêmero que seja, é uma experiência completa que está destinada à eternidade.
Um único momento de beleza e amor justifica a vida inteira.

Rubem Alves

Espera


Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.
Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.

Eugênio de Andrade

28/04/2013

O teu riso




Tira-me o pão, se quiseres,

tira-me o ar, mas não

me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,

a lança que desfolhas,

a água que de súbito

brota da tua alegria,

a repentina onda

de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso

com os olhos cansados

às vezes por ver

que a terra não muda,

mas ao entrar teu riso

sobe ao céu a procurar-me

e abre-me todas

as portas da vida.

Meu amor, nos momentos

mais escuros solta

o teu riso e se de súbito

vires que o meu sangue mancha

as pedras da rua,

ri, porque o teu riso

será para as minhas mãos

como uma espada fresca.

À beira do mar, no outono,

teu riso deve erguer

sua cascata de espuma,

e na primavera, amor,

quero teu riso como

a flor que esperava,

a flor azul, a rosa

da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,

do dia, da lua,

ri-te das ruas

tortas da ilha,

ri-te deste grosseiro

rapaz que te ama,

mas quando abro

os olhos e os fecho,

quando meus passos vão,

quando voltam meus passos,

nega-me o pão, o ar,

a luz, a primavera,

mas nunca o teu riso,

porque então morreria.

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Pablo Neruda

Foto: By Alairce (Liz) Guides
Canela RS

27/04/2013

Soneto XCI

A idade nos cobre como a garoa,
interminável e árido é o tempo,
uma pluma de sal toca teu rosto,
uma goteira corroeu minha roupa:

o tempo não distingue entre minhas mãos
ou um voo de laranjas nas tuas;
fere com neve ou enxadão a vida:
a vida tua que é a minha vida.

A vida minha que te dei se enche
de anos, como o volume de um cacho.
Regressarão as uvas à terra.

E ainda lá embaixo o tempo segue sendo,
esperando, chovendo sobre o pó,
ávido de apagar até a ausência.

Pablo Neruda