27/12/2011

De noite, amada...



De noite, amada, amarra teu coração ao meu

e que eles no sonho derrotem
as trevas como um duplo tambor
combatendo no bosque
contra o espesso muro das folhas molhadas.
Noturna travessia, brasa negra do sonho.
Interceptando o fio das uvas terrestres
com pontualidade de um trem descabelado
que sombra e pedras frias sem cessar arrastasse.
Por isso, amor, amarra-me ao movimento puro,
à tenacidade que em teu peito bate.

Com as asas de um cisne submergido,
para que às perguntas estreladas do céu
responda nosso sonho com uma só chave,
com uma só porta fechada pela sombra.

Pablo Neruda

26/12/2011

Timidez



Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...

- mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...

- palavra que não direi.

Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,

- que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,

até não se sabe quando...

e um dia me acabarei.

Cecília Meireles




24/12/2011

Doce Natal...


Com olhos curiosos, eu acompanhava os movimentos rápidos e precisos da minha mãe, primeiro encaixando um enorme pinheiro que ela mesma tinha buscado numa chácara, numa lata forrada de papel colorido e brilhante; depois, colocando, um a um, os frágeis enfeites que eram tirados, empoeirados, de caixas de papelão: papais noéis, bolinhas coloridas, festões verdinhos, velas que seriam acesas na noite de Natal, pagodes chineses (sim, pagodes chineses, aquelas casinhas de telhados curvos, nem sei porque estavam lá). Por último, encarapitada lá no alto, uma estrela de purpurina com uma grande cauda: a Estrela de Belém. Minha mãe deixava, para mim e ao meu irmão, o prazer de ajudar a enfeitar nosso pinheiro, pedindo para termos cuidado.

Se tenho tantas lembranças dos natais, devo à minha mãe, porque era dela a iniciativa de providenciar tudo: a árvore, os enfeites, a limpeza mais minuciosa da casa, a lavagem de todas as louças mais bonitas, usadas só uma vez ao ano, os doces em compota que ficariam sobre a linda cristaleira de madeira escura e vidros bisotados (para desgosto do meu pai, louco por doces, querendo comer logo), as roupas novas,  os nossos presentes, as saídas noturnas para ver os enfeites da cidade e ouvir a banda, a "Furiosa". Aliás, quase tudo de diferente, de melhor, que acontecia casa, eram iniciativas da minha mãe, já que meu pai, casmurro, fechado, não dava importância para "essas bobagens", participava meio a contragosto... mas no final, acabava gostando, mesmo não "dando o braço a torcer". Sua contribuição era pintar a casa para o evento. Em nossa simplicidade, éramos felizes...

E, então, à noite,antes de dormir, depois de ter escovado os dentinhos e colocado o pijama, eu me ajoalhava diante de um quadro onde um anjo-da-guarda, de grandes asas e roupa esvoaçante, velava uma menininha pelos caminhos, eu rezava ao Papai do Céu pedindo que me abençoasse e à minha família, antes de dormir com uma pergunta martelando a cabeça da criança de cinco anos que eu era: será que Ele, também, tinha o trabalho de, todas as noites, pendurar estrelinhas de purpurina no céu?


Alairce (Liz Guides)

23/12/2011

O Rei-Menino


O estandarte do Rei não é de púrpura e brocado,
é um lírio flutuante sobre o caos,
onde ambições se digladiam
e ódios se estraçalham.
O Rei vem cumprir o anúncio de Isaías:
vem para evangelizar os brutos,
consolar os que choram,
exaltar os cobertos de cinza,
desentranhar o sentido exato da paz,
magnificar a justiça.
Entre Belém e Judá e Wall Street,
no torvelinho de negações e equívocos,
a vergasta de luz deixa atônitos os fariseus.
Cegos distinguem o sinal,
surdos captam a melodia de anjos-cantadores,
mudos descobrem o movimento da palavra.
O Rei sem manto e sem jóias,
nu como folha de erva,
distribui riquezas não tituladas.
Oferece a transparência
da alma liberta de cuidados vis.
As coisas já não são as antigas coisas
de perecível beleza
e o homem não é mais cativo de sua sombra.
A limitação dos seres foi vencida
Por uma alegria não censurada,
graça de reinventar a Terra,
antes castigo e exílio,
hoje flecha em direção infinita.
O Rei, criança,
permanecerá criança mesmo sob vestes trágicas
porque assim o vimos e queremos,
assim nos curvamos diante do seu berço
tecido de palha, vento e ar.
Seu sangrento destino prefixado não dilui
a luminosidade desta cena.
O menino, apenas um menino,
acima das filosofias, da cibernética e dos dólares,
sustenta o peso do mundo
na palma ingênua das mãos.
.
Carlos Drummond de Andrade.